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Vida de Imigrante

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Alegrias e agruras da maior diáspora brasileira da história, a partir do olhar de um entre os 5 milhões que formam o fenômeno.
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O Rei do Gado na Macedônia

Ou como as telenovelas são a representação genuína do 'soft power' brasileiro

Por Edison Veiga Atualizado em 7 nov 2024, 07h18 - Publicado em 7 nov 2024, 07h01

Não fazia nem uma hora que eu havia chegado em Escópia, capital da Macedônia do Norte, era domingo à noite, nada de comércio aberto, e preguiça e cansaço pediam apenas um vinho e algum petisco no quarto do hotel, em vez de um restaurante.

Googlei. Os supermercados estavam todos fechados.

— Vou procurar algum mercadinho de imigrante — disse, resoluto, à Mariana.

Isso aprendemos ainda quando morávamos na Itália. Nas grandes cidades, quando tudo está fechado, há sempre o mercadinho de imigrante. Estes funcionam de segunda a segunda, até altas horas. No balcão, às vezes é um chinês, às vezes um sul-americano, às vezes um paquistanês, às vezes um africano. O atendimento costuma ser gentil, de vez em quando atrapalhado, e as prateleiras não raro exibem preciosidades — já comprei farinha de mandioca num desses, já vi Inka Kola em outro, já degustei coxinhas e me deparei com filtros de barro à venda, já adquiri um estoque de especiarias picantes orientais.

Googlei de novo. Achei um a 20 minutos de caminhada. Ótimo, pensei, vai ser um tour realista pela cidade, muito mais do que o rolê turístico do dia seguinte.

Chamava-se Un Amigo Grande, assim, em espanhol. Imaginei que deveria ser de um boliviano, um venezuelano ou um guatemalteco. Torci pelo guatemalteco. Nunca estive na Guatemala, acho que nunca conversei com alguém de lá. Não tenho nenhum amigo guatemalteco, poderia estar prestes a conhecer un grande amigo de lá. Ou seria apenas alguém extremamente alto?

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O Google Maps não estava muito calibrado em Escópia. Onde apontava para o mercadinho tinha, na verdade, um cassino. Aberto, com uma movimentação rala de viciados em jogatina, maltrapilhos e alcoolizados. Andei mais um pouco. Não achasse o mercadinho, estava valendo a andança inusitada. Não achasse o mercadinho, na volta passaria numa pizzaria que vi aberta e resolveria lá um “pra viagem” da janta.

Virei à esquerda a próxima, saí da avenida principal para cair numa ruela. Muito escura, típica de uma noite de outono em cidade com iluminação pública precária. O atestado de segurança era repetidamente emitido toda vez que eu cruzava com uma moça caminhando sozinha despreocupadamente, uma criança correndo como quem brinca com átomos e moléculas, um habitante local falando ao celular, ninguém com as mochilas à frente ou protegendo bolsas e bolsos.

Andei dois quarteirões na pequena rua escura, observando a arquitetura das casas, tão semelhantes às do interior de São Paulo onde me criei que comecei a colecionar interjeições nos pensamentos: a humanidade é mesmo uma mesmice, uma repetição de formatos, modelos, soluções.

Na esquina, minúsculo, tinha um mercadinho. Porta fechada por causa do frio, luzes acesas indicando o pleno funcionamento. Era um pequeno imóvel de menos de 50 metros quadrados apinhado de prateleiras desorganizadas, gôndolas com repolhos, tomates, batatas e maçãs. O letreiro trazia, em alfabeto cirílico, as letras que formavam a expressão-título Un Amigo Grande. Ao fundo, um senhorzinho de cabelo grisalho e sorriso simpático, olhando para o futebol numa velha TV de tubo de 14 polegadas.

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Deve ser meu amigo guatemalteco, pensei. O grande amigo guatemalteco, vislumbrei.

Entrei cumprimentando em esloveno, sabendo que essas palavras básicas costumam ser muito parecidas em todos os países que formavam a Iugoslávia. OK, a Macedônia é exceção a essa regra, já que lá a maioria fala albanês, que não é língua eslava. Mas os moradores costumam entender sérvio, principalmente os mais velhos. Tudo isso eu estava pensando enquanto observava os produtos buscando reconhecer algum rótulo latino-americano que completasse a história que já estava perfeitamente criada em minha cabeça. Um alfajor, talvez? Doce de leite? Paçoquinha brasileira? Um vinho argentino? Cachaça? Café da Guatemala? Chocolate guatemalteco?

Nada, os produtos eram todos balcânicos. A maior parte dos rótulos estava em cirílico. Peguei uma garrafa de vinho, uma de água, uma barra de chocolates e dois pacotes de batata chips. Fui ao caixa.

Bateu um orgulho de nosso ‘soft power’

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E ali, entre pegar o cartão e digitar a senha, fiquei amigo do Antonio. Nome raro por aquelas bandas, ele mesmo frisou, e emendou lembrando que é mais comum em países latinos. E que talvez daí viesse seu gosto pela cultura espanhola.

— Quando abri este mercado, estava cursando um semestre de espanhol. É uma longa história, mas acabou ficando Un Amigo Grande.

O curso foi interrompido muito antes da fluência — dinheiro e tempo curtos a atravessar a vida. Mas quando ele soube que eu era brasileiro falou “boa noite”, falou “obrigado”. Talvez tenha falado inclusive um “até mais”.

— Fez curso de português também? — perguntei.

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Antonio me contou que não, mas que quando O Rei do Gado passou na TV local ele acompanhou a todos os capítulos. Religiosamente. E mergulhou nesse fiapo de Brasil.

Voltei para o hotel carregando minhas poucas compras e um pacote imenso de lembranças. Bateu um orgulho do nosso soft power tão bem representado pelas novelas. Lembrei do meu amigo Mário Viana, dramaturgo que trabalha escrevendo novelas na Globo. Lembrei de quando 15 anos atrás escrevi uma matéria sobre Angola e ouvi de vários entrevistados a história de que o mercado público de Luanda se chamava Roque Santeiro por causa da novela homônima. Um pouco depois, quando fui para Cuba almocei nos paladares — restaurantes assim chamados por causa da novela Vale Tudo — e era sempre interpelado pelos locais que, vidrados na trama do momento, queriam saber o que iria acontecer em Ciudad Paraíso, que foi como a novela Paraíso acabou chamada nos países de língua espanhola.

E situações semelhantes aconteceram ao longo da rota transiberiana, anos depois. Os russos amam novelas brasileiras. Já aqui na Eslovênia, minha chefe na editora de livros para a qual presto serviços vez por outra me pergunta sobre alguma expressão tipicamente brasileira.

— E onde você viu isso? — rebato, ainda surpreendido.

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— Na minha adolescência eu era completamente viciada em Da Cor do Pecado

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