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Vida de Imigrante

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Alegrias e agruras da maior diáspora brasileira da história, a partir do olhar de um entre os 5 milhões que formam o fenômeno.
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Entre o ‘paraguas’ e o guarda-chuva

Do outro lado do Atlântico o sal são lágrimas, nos lembra Fernando Pessoa. Podem elas ser de felicidade, ou só mesmo de saudade?

Por Edison Veiga 5 set 2024, 07h01

“Porque no estrangeiro é tudo estranho, assim falou uma das crianças, e o dito lá em casa virou mote”, diz trecho do mais recente livro de Chico Buarque, Bambino a Roma. Que prossegue assim: “Eu não estranhava a língua nova ou a cidade antiga, para tudo isso já estava ensinado. Estranho, estranho mesmo era alguma coisa que eu não via, uma coisa que faltava em toda parte, e de noite eu perdia o sono matutando nisso; era dessas adivinhas difíceis de decifrar e que quando decifra a gente exclama: é claro!”

Quando eu era criança, sentia-me estrangeiro todas as vezes que ia para Avaré, 64 quilômetros da minha Taquarituba, de onde sempre pertenci feito fauna autóctone, os pés vermelhos, os joelhos ralados do brincar, as mãos sujas e o sotaque de pronúncias que hoje acho bonitas e vocabulário que, se encuiar mais um pouquinho, pronto, vira dialeto.

Agora sou estrangeiro do outro lado do Atlântico, o que ressoa renitente Pessoa com seu “ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas” não de Portugal, mas de Taquarituba. “Por te cruzarmos, quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram”, acho que é por aí que vai o poema, a memória já não ajuda tanto, 40 anos pesam um tantinho se estamos sóbrios.

Uma das minhas últimas tarefas jornalísticas feitas em solo brasileiro consistia em entrevistar diversos estrangeiros que viviam em São Paulo. Foi para um especial do Estadão, galhardo periódico onde tive a honra de trabalhar por 10 anos. Olhar nos olhos daquelas pessoas, ouvi-las e escrever os fragmentos que me pareciam mais relevantes de suas histórias de imigração foram a mais intensa ocupação de mente e coração deste velho repórter nos meus últimos quatro ou cinco meses de emprego no jornalão.

Ironia das ironias, pensava eu, bloquinho em uma mão, caneta na outra. Ironia das ironias, repetia para mim mesmo, celular avisando o motorista que eu aguardava na esquina tal, número tal. Ironia absurda de vida, sonhava acordado, naqueles minutos de insônia que se convertem em horas quando nos perdemos em desvarios.

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Aquelas dez pessoas com quem convivi, cujos rostos guardo na lembrança, eram o avesso do que eu seria. A professora chinesa, a publicitária argentina, o músico japonês, o advogado norte-americano, a administradora peruana, a arquiteta francesa, a dona de casa paraguaia, o barbeiro boliviano, o agrônomo haitiano e o cozinheiro colombiano escolheram viver no Brasil ou acabaram precisando viver no Brasil. Eu colhia seus depoimentos e, no caminho de volta ao jornal, despedia-me daquelas ruas paulistanas que passei a conhecer tão bem. Quando chegava em casa, gastava algumas horas encaixotando meus livros sem saber quando ou se tornaria a folheá-los. Comia arroz e feijão e pensava: este prato deixará de ser banal.

Recordo-me que, numa das conversas, a peruana quebrou todos os protocolos do meu jornalismo ao ver que seu relato do início difícil com criança pequena havia me deixado profundamente emocionado — meu filho ainda não tinha completado 4 anos e toda a aventura da nova vida, é claro, seria com ele. A entrevistada se levantou da mesa e me deu um abraço, carinhoso, maternal.

Com o haitiano e com a francesa aprendi que era bom ter alguns objetos que me remetessem ao que fui e jamais deixarei de ser: brasileiro, palmeirense, taquaritubense. Com o norte-americano e com a paraguaia, percebi que algumas comidas que eu nem valorizava tanto se tornariam o componente mais saboroso da saudade. O colombiano me transmitiu força: ao contrário de sua trajetória, o meu movimento rumo ao degredo era voluntário, planejado, intencional e relativamente seguro. A chinesa e o japonês, que já falavam tão bem português, eram a prova de que, sim, o intelecto humano desconhece limites quando se quer ou se precisa aprender novas línguas.

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Mudar de país é viver duas vidas numa só

O boliviano me ensinou que às vezes é preciso se reinventar, sem nunca perder o bom humor e a solidariedade. Estava chovendo no dia em que estive em sua barbearia e, ao me ver desprovido de capa de chuva, ofereceu-me seu paraguas. Não aceitei, brinquei que quem estava na chuva era para se molhar e, diante de sua insistência, argumentei que o motorista do jornal me pegaria perto, na porta talvez. Mas me quedei pensando na palavra e como cada idioma tem suas peculiaridades capazes de significarem os objetos de forma diferente. Não, não existe tradução — tudo é versão. A gente usa guarda-chuva, e este guarda pode ser no sentido de proteger contra a chuva. Mas eles usam paraguas, e o para é porque interrompe o curso da água. Chuva é literal, exata. Águas podem vir de uma velhinha jogando um balde pela janela. Ou das lágrimas de nostalgia vertidas por um imigrante.

E foi em claríssimo portunhol que a publicitária argentina me disse: quem emigra vive duas vidas numa só. Achei bonita a frase, anotei, desconfio até que botei em algum lugar do texto. Só fui entender isso plenamente dias atrás, quando no meu aniversário reuni quase 50 pessoas para um churrasco em minha casa. Olhei para eles e pensei nos meus amigos queridos que ficaram no Brasil ou se espalharam por outras partes do mundo, nesta diáspora em que vivemos.

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Um dos convivas era Robert, um dos primeiros nativos com quem criei laços de amizade por aqui. Em dada altura, já calibrado por muitas doses de chope e talvez um gole ou outro de žganje, comentou o que estava pensando: “outro dia você era apenas um estrangeiro que poderia estar de passagem, sabe-se lá; agora tem sua casa, fincou raízes, tornou-se um dos nossos”.

Em fevereiro vai fazer sete anos que deixei o Brasil. Escapei de viver presencialmente os anos pandemônicos e estou longe do convívio com os reducionistas antidemocráticos que resistem, alguns sob outros formatos, em repaginações marqueteiras, coacheiras e picaretas muito próprias de períodos eleitorais. Encontrei aqui outras discordâncias, é bem verdade, afinal lugar algum é perfeito e os extremismos estão por toda parte nestes anos bicudos.

Autóctone e telúrico contudo, receio que vejo nesta minha nova cidade a velha Taquarituba que, daquele jeito, só existe mesmo na minha lembrança de criança — é apenas uma fotografia no fundo de tela do computador.

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Mas como dói.

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