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Vida de Imigrante

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Alegrias e agruras da maior diáspora brasileira da história, a partir do olhar de um entre os 5 milhões que formam o fenômeno.

A ética do hortelão por mero passatempo

Contra a ditadura do hobby, a solução é uma atividade que possa ser exercida despreocupadamente

Por Edison Veiga Atualizado em 6 mar 2025, 07h10 - Publicado em 6 mar 2025, 07h01

As tulipas plantadas antes da primeira geada do outono começam a brotar. Antecipam a primavera. Abreviam o inverno da tragédia climática. Em meus seis anos de Eslovênia, nunca havia visto tão pouca neve em uma temporada. Fiquei até com saudades da labuta interminável de, pá em punho, limpar o quintal para o carro sair, numa operação que muitas vezes era a literalidade da expressão “enxugar gelo”.

Os brotos das tulipas carregam a expectativa das cores que virão, do verão logo ali na esquina, do sol voltando a brilhar, do viver novamente ao ar livre, do aquecedor enfim desligado. Mas também funcionam como um relógio biológico para este hortelão vadio que ora escreve: é hora de preparar o solo, outrora mais congelado do que vivo, para que ele, devidamente oxigenado, possa voltar a receber sementes, mudas e, assim, cio da terra propícia estação, tornar a ser milagre da frutificação, fonte automática e aromática de alimentos saudáveis, orgânicos.

Enfim, quero voltar a ter o prazer de colher o que plantei. De colocar à mesa o resultado direto do meu suor. De acariciar folhas, embasbacar-me numa idolatria às flores, salivar ao recolher frutos. Quero me sentir simples. E necessário.

Aqui nos confins do hemisfério norte, minha vida de hortelão se resume a poucos meses do ano, isto é verdade. Sou um hortelão atrapalhado e quase incapaz, isto também é verdade. Perco tempo com observações inócuas, anoto tentativas vãs em meu canhenho surrado, invento soluções que desembocam em nada, planto coisas que nem brotam. E outras até que nascem bem — mas são consumidas por insetos ou caracóis antes mesmo de eu colher.

Se eu quisesse garantias eu iria às gôndolas do supermercado.

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Testo espaços, percebo apertos. Vejo um vegetal diferente, planto — depois percebo que não gosto. Exagero nas variedades de manjericão, não recolho nem dez por cento das folhas, sobra tudo. Ignoro conselhos técnicos: por que vou arrancar as flores só para que a planta não gaste energia e produza por mais tempo? Vale a pena ficar sem a beleza das flores? E as abelhas, como irão fazer? Faço-me de surdo diante da voz da experiência: não, não vou cobrir essa terra durante o inverno; não, não voltou passar horas pinçando as lesmas e condenando-os à pena capital; não, não vou escolher vegetais pela ideia de produtividade. Desprezo a ciência da botânica, da engenharia agrícola, da agronomia, da biologia, da economia. Desprezo o próprio capitalismo. Sou amador por inteiro.

Minha hortinha é pequena se comparada com a de uma safra profissional. Mas é imensa se comparada àquela que tive confinada em um apartamento paulistano. É meu hobby. E tenho refletido muito sobre hobbies.

Vigora uma espécie de regra da contemporaneidade: é preciso ter um hobby. Vivemos a ditadura do hobby. Para mim, que nunca fui de pensar em hobby até começar a ser analisado, isso soava esquisito. Acho que porque amo escrever e meu trabalho não me parece carregar o peso lancinante de um trabalho. Acho que porque em geral gosto das coisas que faço. De sorte que mesmo a brincadeira hortelã não me soava como um hobby: soava como um passatempo.

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Passatempo é uma palavra mais gostosa do que hobby

Hobby e passatempo me parecem coisas diferentes. O primeiro, por conta dessa regra da contemporaneidade, traz consigo um peso, uma pressão. Virou obrigação. Encerra em si a mesma lógica do modelo capitalista, com cobranças de perfeição, eficiência, resultados. No fundo, eu sempre me senti um pouco sufocado por essa necessidade de ter um hobby.

Passatempo é diferente. Tem a sinestesia de um pacote de bolachas, acho que porque era a minha marca de bolachas predileta quando criança. O nome é simpático, junta o verbo passar e o substantivo tempo. Não soa como trabalho, como obrigação, como tarefa. Não parece cobrança. Soa como aquela página de ligue-os-pontos e de jogo-dos-sete-erros que vinha no meio do almanacão de férias da Turma da Mônica e, se desse vontade e estivesse chovendo, talvez a gente até arriscasse resolver em vez de ir para a praia.

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Quando estou remexendo, mexendo e mexericando o solo da minha hortinha, tenho filosofado sobre a natureza deste hobby — ok, vou assumir aqui o termo que soa melhor aos ouvidos da contemporaneidade. Esta atividade virou meu álibi quando alguém pergunta qual meu hobby. Porque antes eu me apoiava na muleta, respondia “é escrever, mas veja bem: não escrever o jornalismo, mas escrever a tentativa de literatura; é um pouco diferente embora para quem veja possa parecer que estou fazendo a mesma coisa”.

Essa muleta não estava boa, agora consigo perceber. Apoiava-me nela mas seguia manquitolando. Porque enquanto escrevo, por mais que eu goste, por mais que eu necessite, por mais que escrever seja minha maneira de expressão, a forma como eu me identifico comigo mesmo, o jeito que me significa, eu sofro. Eu também me divirto, mas eu sofro muito. Há um peso em cada palavra. Dói escolher um verbo, às vezes pelo simples fato de que escolhê-lo significa abrir mão da imensa maioria dos outros verbos que também funcionariam muito bem naquela sentença. Machuca selecionar um substantivo porque muitas vezes eu preciso da palavra assim: afiada, pontiaguda, árida, carente, sedenta por escapar do estado de dicionário e se ver formando uma frase.

Por outro lado, enquanto sou hortelão não me preocupo em ser bom, não vejo problema em resultar ineficiente, não me cobro de forma alguma. Estou lá, mas é porque me vejo em uma espécie de simbiose com a natureza. Estou lá, mas muitas vezes estou pensando longe — às vezes até no texto que quero escrever quando terminar de podar aquela cerejeira.

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Talvez agora, 40 anos nas costas que doem quando fico muito tempo carpindo, eu finalmente tenha compreendido o que é um hobby. Ou melhor: um passatempo.

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