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Vida de Imigrante

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Alegrias e agruras da maior diáspora brasileira da história, a partir do olhar de um entre os 5 milhões que formam o fenômeno.

Desejos da carne

Em busca da picanha perfeita: para aplacar a saudade de um bom churrasco, vale quase tudo

Por Edison Veiga Atualizado em 5 dez 2024, 15h56 - Publicado em 5 dez 2024, 07h01

Algumas verdades doem na carne, mas é preciso enfrentá-las com a faca afiada da coragem: a maior saudade do imigrante brasileiro não é da praia, não é do clima agradável, não é do futebol, talvez nem seja das pessoas.

A maior saudade do imigrante brasileiro é da comida. Do pastel de feira ao bife acebolado, passando pelo pão na chapa da padoca da esquina e pela coxinha amanhecida do boteco favorito, não tem para ninguém. No caldo da miscigenação de raças, culturas e saberes que nos constituiu brasileiros, foi criado o condimento especial que transformou receitas de todas as partes do planeta de um jeito único e sensacional ao paladar.

Pratos consagrados da gastronomia mundial ganharam reinvenções muito mais saborosas no Brasil. E aqui podemos pegar qualquer exemplo. O sushi. O estrogonofe. O bife à parmegiana. Até o cachorro-quente.

Mas no meio disso tudo — que já me deixa salivando, a um oceano de distância —, tem aquele símbolo nacional que é, me perdoem os vegetarianos, o churrasco.

Não o churrasco americano que mais parece um bife grelhado. Não o churrasco europeu que mais parece um par de salsichas grelhadas. E não os também deliciosos churrascos argentino e uruguaio.

Falo aqui do churrasco tradicional brasileiro. Carne no espeto. Picanha muito bem acomodada, com a camada generosa de gordura abraçando a macia carne como se ambas as partes fossem um casal amalgamado dormindo de conchinha. Tudo salpicado com sal grosso: o único e necessário tempero.

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Desde o início de 2018, quando desembarquei definitivamente em solo europeu, empreendi uma busca inveterada pela picanha perfeita. E coloquei como meta de vida um dia poder recriar, de preferência no quintal de minha casa e com frequência semanal, um verdadeiro churrasco de domingo brasileiro. Com farofa, vinagrete e amigos.

Países com colônias grandes de imigrantes do Brasil costumam contar com mercadinhos de produtos típicos. Nestes, até tem a picanha de origem sul-americana. Pelo preço de um rim (humano), leva-se um bom corte de carne bovina. Mas não é o caso da Eslovênia, com suas parcas duas centenas de compatriotas tupiniquins.

Meu primeiro ano fora do Brasil foi na Itália. Sexto principal destino para brasileiros que decidem viver no estrangeiro, o país conta com churrascarias no modelo tipicamente verde-amarelo e não é tão difícil encontrar uma adequada picanha em grandes açougues ou supermercados.

Só que eu morava na pequena Paderno Dugnano, colada na também pequena Senago, duas cidadezinhas acolhedoras porém periféricas. Levei dez meses para convencer um açougueiro a me cortar uma picanha. Disse-me ele que cobraria 25 euros o quilo e que eu poderia passar na sexta-feira seguinte para retirar a encomenda.

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Açougueiro italiano vendeu a picanha mas não quis cobrar pela gordura

Mariana e eu já vislumbrávamos um almoço especial — na falta de churrasqueira, assaríamos no forno a nobre peça. Cheguei ao açougue esboçando um belo sorriso. A carne jazia empacotadinha me aguardando. Paguei e levei para casa.

Ao abrir, a trágica surpresa: a picanha estava lá, bonita até. Mas havia passado por uma verdadeira lipoaspiração. Nenhuma gordurinha. Nada. Necas de piritiba. A picanha mais fitness que eu já vi na vida. No mundo fantástico das carnes, desfilaria fácil nas passarelas de um mega-evento mundial de moda.

Na semana seguinte voltei com nova encomenda. Saquei o celular e mostrei ao açougueiro fotos de picanhas perfeitas.

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– Quero que deixe a gordura. Assim, ó!

Ele fez que entendeu. Quando fui buscar, me entregou a fatura: 20 euros o quilo, em vez dos 25.

– Porque não posso lhe cobrar por esse tanto de gordura. Eu vendo carne, não vendo gordura — resmungou o italiano.

Duas semanas depois estava eu de mudança para a Eslovênia, onde vivi um longo périplo em busca da desejada e suculenta picanha. Havia uma lenda — por vezes até hoje ressuscitada — que num grande supermercado de Ljubljana “sempre tem”.

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Nunca teve.

Já morava aqui há quase três anos e estava resignado aos churrascos com čevapčiči e pljeskavica quando um amigo português me apresentou um empório que “quase sempre” tem picanha.

De lá para cá a oferta — ou o meu conhecimento dos fornecedores locais — melhorou, admito. Descobri a loja favorita, um atacadista de carnes que normalmente vende diretamente a grandes restaurantes. E, desde maio, tenho uma churrasqueira fixa construída no quintal, com espetos devidamente made in Brazil importados via Amazon alemã.

O verão foi bom. Coincidência ou não, depois que meu médico esloveno veio saborear um churrasco ao mais puro estilo brasileiro aqui em casa ele resolveu me prescrever um remédio para controlar o colesterol.

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– Não custa prevenir, você já está na casa dos 40, sabe como é… — justificou ele.

A tristeza, contudo, mora na impossibilidade, ainda que momentânea. Enquanto trabalho, da janela vejo a churrasqueira todos os dias. Só que, agora, só posso ficar sonhando com os prazeres da carne — porque assar qualquer coisa nas temperaturas negativas do inverno, acredite, é tarefa das mais complicadas. (Até já fiz isso, mas esta é uma história para outra crônica.)

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