Brasileiro que nem a Fernanda Torres
Acessos ao verbete da atriz na Wikipédia aumentaram exponencialmente em todo o mundo; fenômeno também foi observado no artigo sobre Fernanda Montenegro

Geralmente é doído para um forasteiro ler sobre o Brasil nos jornais internacionais porque a saudade vem banhada de tristeza. Desmatamento histórico na Amazônia, inundações sem precedentes em algum lugar do país ou uma verdadeira epidemia de queimadas costumam ser muito mais notícia por aqui do que qualquer boa nova que, em suma, interessa mais aos brasileiros do que ao restante do mundo.
Na última segunda, contudo, o coração de cada um dos milhões de brasileiros residentes em outros países conseguiu bater em verde-amarelo. Sou brasileiro que nem a Fernanda Torres. Somos brasileiros que nem a Fernanda Torres. Sou brasileiro que nem a genial atriz que ganhou o Globo de Ouro.
Aqui na Eslovênia, o Portal 24 escreveu que ela “brilhou”. Nos Estados Unidos, o jornal Washington Post lembrou que a disputa era “acirrada”, dado o peso das concorrentes, e a revista The Hollywood Reporter destacou que a brasileira “derrotou um grupo cravejado de estrelas”. O italiano Corriere della Sera classificou a atriz como “extraordinária protagonista”. Na Inglaterra, o jornal The Independent trouxe matéria sobre a trajetória tanto de Fernanda Torres como de sua mãe, Fernanda Montenegro.
A Wikipédia também sentiu o impacto da premiação. A versão em inglês da enciclopédia registrou os picos históricos nos acessos aos verbetes de ambas as atrizes de segunda para terça-feira. O artigo sobre Fernanda Torres teve quase 120 mil acessos — a média diária era de menos de 100 visitas a cada 24h. O de Montenegro, que tinha média de 170 acessos, foi visitado 57 mil vezes.
Fenômeno semelhante também ocorreu na Wikipédia em português. O verbete de Torres teve 190 mil acessos — a média diária era de 500. O de sua mãe, cuja média era de pouco mais de 900, foi visto por 120 mil pessoas.
O Globo de Ouro concedido à atriz na noite do último domingo teve o peso de diversos simbolismos. A começar pelo filme em si: em Ainda Estou Aqui, Torres encarna Eunice Paiva, uma das tantas pessoas que tiveram a família destruída pela brutalidade de um regime político nefasto — a ditadura militar que vigorou no país entre 1964 e 1985.
Assim, o prêmio não só faz justiça ao trabalho da atriz como expõe, tanto aos brasileiros negacionistas quanto aos cinéfilos de todo o planeta, uma história real que integrou um capítulo atroz da nossa história.
E este é um ponto importante porque inevitavelmente ecoa aquele velho clichê de que a história precisa ser lembrada para que os mesmos erros são sejam cometidos. Vivemos um momento em que pipocam em todo o planeta discursos, ideias e plataformas extremistas, com seus vieses autoritários. No Brasil, há dois anos, houve uma tentativa de golpe de Estado. Nos Estados Unidos, há quatro anos, uma invasão ao Capitólio tentou impedir a posse do presidente legitimamente eleito.
Esta questão foi destacada pela revista norte-americana Variety, que endossou o discurso de que a história do filme “ressoa de forma diferente após a insurreição de 6 de janeiro [de 2021] nos Estados Unidos e os tumultos [de 8 de janeiro] de 2023 no Brasil, quando apoiadores do político de direita Jair Bolsonaro invadiram prédios do governo brasileiro por causa de suas falsas alegações de fraude eleitoral”.
Prêmio resgatou orgulho nacional e deu ainda mais visibilidade a um passado atroz
Outro aspecto da singular premiação foi a merecida reverência (e referência) à outra Fernanda, a Montenegro. Aos 95 anos, a mãe de Torres tem seu lugar eternizado no panteão das maiores personalidades brasileiras de todos os tempos. Mas mesmo em seu auge internacional, com o premiado e aclamado filme Central do Brasil, acabou preterida pelo Globo de Ouro — até o ano passado ela era a única brasileira que já havia sido indicada como “melhor atriz” na importante premiação.
Por fim, Fernanda Torres e o sucesso do filme Ainda Estou Aqui conseguiram resgatar aquele orgulho nacional que parecia perdido em algum lugar do passado recente, no mesmo fundo do armário empoeirado em que boa parte dos brasileiros fomos obrigados a guardar a camisa da seleção quando ela acabou profanada por um grupo político de inspiração fascista.
Na última segunda-feira, todos pudemos ler, ver e ouvir as notícias com aquele sentimento de alegria por sermos brasileiros. Brasileiros que nem a Fernanda Torres. Brasileiros que nem a Fernanda Montenegro.
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