Roberta Sudbrack em nova fase inspirada na cozinha: ‘liberdade’
Chef conversou com a coluna GENTE durante inauguração do restaurante Ocre, em Gramado (RS)

Gaúcha, Roberta Sudbrack, 56 anos, só agora assina o menu de um restaurante em seu estado. Ocre, localizado no charmosíssimo hotel Wood, em Gramado, traz um pouco de várias fases de sua carreira. Na charcutaria tem o cachorro-quente que fez sucesso no Rio; na cozinha tem a hierarquia aprendida em sete anos como chef do Palácio do Planalto, no governo de Fernando Henrique Cardoso; no cardápio, ingredientes bem brasileiros com seu toque refinado – como o quiabo, que tanto valoriza. E, por que não, ali também estão as lições aprendidas com sua trajetória. Durante o Rock in Rio de 2017, por exemplo, a Vigilância Sanitária descartou mais de um milhão de reais em alimentos por não encontrar registro para comercialização dentro do município, chamado de Serviço de Inspeção Federal (SIF). Em meio a uma depressão que lhe abateu, sua luta por anos foi conseguir a criação de um selo que fosse nacional. Em conversa com a coluna GENTE, Roberta analisa o cenário gastronômico do país.
Por que só agora assinar um restaurante no Sul? Sempre tive questão com essa coisa de assinar cardápio. Tem a ver com estar mais próximo. A minha mania de controlar não me permite virar as costas. Aí surgiu esse convite para abrir o Ocre. Vim para dizer ‘não’. Quando conheci a família que controla o hotel e os produtos, acabei me envolvendo e aceitando. É uma proposta de uma cozinha mais artesanal, onde cada prato é um prato. Não quero me preocupar, por exemplo, com a exatidão do tamanho da carne. Estou na minha liberdade aqui.
Trouxe seu famoso cachorro-quente, que virou febre no Rio? Não pode faltar. Resgato minhas essências no Ocre. Tinha um negócio que sempre me falava atrás da orelha: ‘Quando você cismar de mexer com cachorro-quente, sua vida vai dar uma reviravolta’. E foi o que aconteceu. Foram filas e filas. Aquele momento, com aquelas filas, foi o auge da carreira, onde me senti mais feliz. Estava ali de cara para o cliente, entregando o cachorro-quente, olhando no olho e aí depois eu voltava para o meu restaurante, formal, numa redoma, longe do público.
A cozinha tinha perdido a graça? É. Claro, saía da cozinha para conversar e tal, mas tinha uma coisa ritualística. Então aquilo (a venda de cachorro-quente) foi mexendo demais comigo. Junto com isso, encontrei uma senhora na rua, que eu não sei quem é, me abraçou e falou: ‘Adoro tudo o que você faz, mas infelizmente nunca vou poder ir no seu restaurante’. Aquilo foi uma faca na minha jugular.
Teve a ver com a decisão de fechar seu restaurante, que tinha uma estrela Michelin? Sim, porque você não faz uma cozinha como a que me propunha, para ficar longe das pessoas. Eu tinha 20 funcionários para atender 40 pessoas por dia, é uma coisa que hoje está fora de moda, não existe mais. Na Europa, os restaurantes deste nível estão em palácios, dentro de hotéis, ninguém consegue sustentar uma coisa dessas. E ouvir aquilo mexeu comigo, ainda mais diante do sucesso do cachorro-quente.
Você valoriza elementos pouco ‘nobres’ na gastronomia, como quiabo. Ao mesmo tempo, trava luta contra a cozinha molecular, que andou na moda. Pode falar disso? Aquilo como experiência, com início, meio e fim, tudo bem. Mas para mim não é comida de verdade. Estou interessada na comida de verdade, e não em comer fumacinha no prato. Comida de verdade está alguns passos atrás. E aí a gente traz cultura, história, esse saber que passa do pai para filho. Isso sim é oportunidade de ouro.
O sucesso dos programas de gastronomia formou público crítico da noite para o dia. Todo mundo virou jurado de Masterchef. Como vê esse movimento? Glamuriza a profissão. Se for te falar friamente, para a cozinha atrapalhou demais. Foi talvez o pior momento que a gente viveu. O momento das escolas de gastronomia foi complicado, porque o aluno ia para uma escola, onde pagava quatro vezes o que ia ganhar como um auxiliar de cozinha. Trabalhava, fazia as aulas no ar-condicionado, nas melhores condições possíveis, três horinhas por dia. Quando ele entrava na cozinha para trabalhar na quentura, não sei quantas horas de pé e ganhando pouco, desistia. O dia a dia da cozinha é maçante.
Você é contra as estrelas e premiações de restaurantes? Nem contra, nem a favor. Nunca busquei isso. Fazia um trabalho que acabou chamando a atenção, apesar da gente saber que tem um método para se fazer parte de uma lista de estrela, tem que seguir umas regrinhas. Mas num certo momento, isso passou a não ser importante.
É verdade que você teve depressão depois de fechar seu restaurante estrelado? Tinha uma estrela Michelin, e era considerada o décimo melhor da América Latina. A gente curtiu tudo isso, mas sempre falei aos meus cozinheiros que o jornal de hoje embrulha o peixe de amanhã. Mas depressão não foi ali, foi depois do Rock in Rio, no mesmo ano, em 2017.
Foi quando teve problema com a vigilância sanitária, não? É, na verdade, a depressão veio quando consegui o selo de qualidade dos alimentos. Participei, inclusive, da redação, porque todo mundo soube que o problema tinha sido comigo. Quando Michel Temer, presidente na época, assinou, uma pessoa me mandou antes de todo mundo saber. Naquele momento, era como se meu corpo tivesse relaxado e dito: ‘pronto, você pode descansar agora’. Mas aí tive depressão, o corpo não aguentava mais lutar.
Como foi o trauma do Rock in Rio? Uma das coisas que me fez sofrer tudo o que sofri com a história do Rock in Rio, não foi só o meu envolvimento com os produtores, que não é de hoje, mas ver 800 quilos de comida serem jogados fora. Isso foi criminoso. Uma briga judicial teria minimizado meu prejuízo, de mais de um milhão de reais. Mas resolvi lutar para mudar a lei. Não me arrependo.
Voltaria a trabalhar num evento como esse? Não voltaria. Te confesso que aquilo foi muito traumático. Quando você faz um nome, sabe que está propenso a, de repente, ter fiscalização diferente dos outros. Sou rígida com questão de segurança alimentar, apesar de defender o artesanato. Um salame sem rótulo, vou sempre experimentar, mas não posso servir no restaurante. Só que os vigilantes implicaram com as linguiças do cachorro-quente que estava fazendo, e com o queijo (os fiscais não encontraram a ficha técnica dos alimentos de pequenos produtores, com informações sobre procedência, que Roberta tinha repassado à direção do Rock in Rio, autorizando-a a vendê-los). E no fim das contas, o Rock in Rio não bancou isso.
Chegou a procurá-los? Lógico. Lembro que falei: ‘eu vou sair’. E aí eles: ‘não, pelo amor de Deus, não sai. Lady Gaga já saiu, vinha e não vem mais’. Era medo da Roberta Sudbrack também sair. Falei: ‘beleza, então vamos lá conversar com quem aplicou a multa’. Disseram: ‘não, Roberta, esquece isso. Amanhã você volta, qualquer coisa que botar dentro de um pão vai vender’. Aí falei: ‘vai vender porque Roberta Sudbrack não coloca qualquer coisa dentro de um pão’. Nisso aí perdi um milhão de reais. Lady Gaga superou, eu ainda não.
Imagino a loucura que deve ter sido comandar a cozinha do Palácio do Planalto. O que você traz daquela experiência? Foi minha grande escola, onde pus em prática o que aprendi sozinha. Trabalhava com militares, era a única civil a cozinhar para o presidente da República. Pegava a equipe e tinha que ensinar o beabá, porque eles só faziam comida de quartel. E uma coisa interessante, mas horrível: quando acabava de treinar aquelas pessoas, faziam rodízio e eram deslocados. Tinha que treinar tudo de novo. Fui bater lá em cima no Palácio: ‘preciso falar com o presidente e com a dona Ruth’. Eles me ajudaram com os generais, para que eu pudesse manter a mesma equipe durante todo o mandato.
Ainda preserva a fama de mandona na cozinha? Sou uma outra pessoa hoje em dia, muito mais flexível, mãezona, só que continuo sendo rígida de maneira diferente. A gente amadurece. Mas tem que ter hierarquia. Se não tiver um chefe, um subchefe, um primeiro cozinheiro, não funciona; é uma orquestra.
O que você não come? Não gosto de comida ruim e miolos. Qualquer tipo de miolos e qualquer comida ruim. De resto, gosto de experimentar tudo. Mas comida ruim me deixa num humor terrível. Às vezes, faço uma viagem para algum lugar… Por exemplo, quando visitei a Croácia… No dia que encontrei um restaurante onde comi bem, fui lá todos os dias.