Posse de Ailton Krenak na ABL: atriz no chão, chá da floresta e críticas
Pensador indígena se tornou imortal em cerimônia na noite desta sexta-feira, 5; veja fotos exclusivas
Em mais um movimento para abranger a diversidade que tanto fazia falta aos salões da suntuosa Academia Brasileira de Letras (ABL), a centenária instituição fez festa para celebrar a posse de Ailton Krenak, 70 anos, como novo imortal na noite desta sexta-feira, 5. O pensador indígena, autor de clássicos como A vida não é útil e Ideias para adiar o fim do mundo, vestido do tradicional fardão e bandana na cabeça, recebeu das mãos de Fernanda Montenegro um colar e de Arnaldo Niskier a placa comemorativa pelo feito.
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Na presença dos ministros da Cultura, Margareth Menezes, e dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, além de Joenia Wapichana, presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Krenak discursou por quase duas horas, arrancando aplausos e risadas em vários momentos, o que deu um tom mais coloquial a toda formalidade da noite (leia abaixo trechos do discurso). Gilberto Gil, muito assediado pelos convidados, Cacá Diegues e Ruy Castro, entre outros imortais, também imortais, estavam na solenidade. Na plateia, atrizes como Christiane Torloni, Elisa Lucinda, Lucélia Santos – que chegou a ficar no chão para assistir à posse – e diversas lideranças indígenas de várias partes do país.
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Nas varandas da ABL, ativações de cerâmica feita na hora, apresentação de legumes e raízes típicas das florestas brasileiras, exposição de redes indígenas, além de um coquetel bem tropical – frutas como goiaba, melancia e carambola. Para beber, pariri com cidreira e melissa com pitanga, chás servidos à temperatura ambiente. Tirando os seguranças truculentos, sem a menor noção de tato com a multidão que se aglomerava pelos salões, tudo seguiu às ordens. Numa concorridíssima noite de celebração, como há muito não se via no palacete fundado por Machado de Assis, o tema mais comentado foi o fato da ABL ter, enfim, um pensador indígena entre seus 40 imortais.
“Demorou né, como demorou 105 anos para termos um segundo preto, Domício Proença Filho. E Raquel de Queiroz só em 1976 se tornou a primeira mulher aqui. Agora a gente tem o primeiro indígena. Torço para que ele tenha força para balançar essa casa branca. É uma cena feia, desculpe, mas é imagem do colonizador. A foto oficial sempre é do colonizador”, criticou Elisa Lucinda à coluna. Ex-ministro da Educação no primeiro governo Lula, Cristovam Buarque concordou com a atriz. “Senti o evento como uma reinauguração da ABL, trazendo para dentro dela uma nova maneira de pensar, de falar. Foi um momento histórico”.
O poeta e imortal Geraldinho Carneiro preferiu o tom pacificador. “A presença do Krenak é fundamental não apenas para ampliar o alcance da Academia, que originalmente é de letras impressas. Com a entrada dele, assimila-se uma série de falas e linguagem, sobretudo a cosmologia, que enriquece profundamente a capacidade que temos de absorver as diversas formas de cultura brasileira”.
Um dos nomes mais citados nas últimas eleições como possível candidata à vaga de imortal, Conceição Evaristo acredita que Krenak traz um grande avanço à instituição. “ABL é uma casa que resguarda e ao mesmo tempo difunde uma cultura nacional a partir da literatura. A cultura nacional é formada de mil fases e o Krenak chega trazendo uma dessas fases que está na raiz da ancestralidade brasileira. Ele aqui é uma espécie de benção. Não só para os povos indígenas, mas para todos nós”.
A seguir, trechos dos melhores momentos do discurso de posse de Krenak na cadeira “fundada” por Raimundo Corrêa, mas que também já foi ocupada por Oswaldo Cruz, Aluísio de Castro, Cândido Mota Filho e Raquel de Queiroz:
“Temos o dever de cobrar uma sociedade mais amorosa e cuidadora uns com outros, expressando a nossa república na alma de sua nação que é a cultura. Uma nação sem cultura não tem o que dizer. É uma honra estar na presença gentil e acolhedora da ministra Margareth. Ministro Silvio Almeida também se tornou meu amigo, me alinhei com a maneira admirável que ele lida com a complexa realidade do país. Presidente da Funai, muito feliz com sua presença, à frente de um órgão sempre muito suscetível a marés de governos, como o que a gente teve em fase recente que bradava ‘não vamos remarcar nenhuma terra indígena’. (…) Rito é uma das maneiras de instituir mundos. A ideia de caos em ordem deve estar relacionada com nossa capacidade de produzir sentidos, e a produção de sentidos é um rito. É uma reza, uma oração, uma procissão, como diz Gilberto Gil. Essa ritualização da vida nos dá potência para ir além e produzir o que precisamos para viver, progredir e nos alimentar. O rito nos saca desse lugar comum e nos coloca na criação de mundos, no exercício de nossas capacidades de traduzir subjetividades. De tornar ideias em substâncias para nos alimentar, nos inspirar. Ritos são importantes exercícios de comunhão humana, como sociedade sensível pra se cuidar uns dos outros e não necessariamente de predar uns aos outros. Homo sapiens tem vocação imensa pra predar. Se não desenvolvermos cura, estamos cooperando com a prática da predação. A gente quer ganhar tempo e vantagem em tudo. A gente fica feliz com reconhecimentos de mérito, como diz Heloísa Teixeira. É curiosa a cultura de pensar que algumas pessoas tem mérito e outras não, é uma ideia motora da predação. Sapiens não é um dinossauro. O sapiens é gentil, simpático, anda por aí, vai à praia, gosta de sorvete. Até açaí ele diz que gosta. Mas não despista sua vocação predatória. (…) “O que é um griô? Sabemos bem o que é um erudito, um acadêmico, um historiador. Algumas sociedades anteriores a nossa, acreditavam que um griô seria uma biblioteca de conhecimento que se move e tem passagem livre de um território a outro, porque todos reconhecem nele a qualidade de narrador de mundo. Todo mundo que escreve um livro incrível já ouviu história de gente que não escreve livros incríveis” (…). O Estado pedir perdão é muito pouco perto do que foi feito com os povos indígenas no país. Papa Francisco diria que é um gesto cristão, mas perdão é um gesto cívico. O Estado não tem como pedir perdão, não consigo imaginar isso. Toda teoria política diz que o Estado é a única coisa que pode matar sem pedir desculpas. Pedidos de desculpa não vão fazer nascer de novo as palmeiras que aqui estavam de pé”.
Há alguns meses, Krenak participou do programa da coluna GENTE no Youtube. Reveja abaixo:
Abaixo, fotos da noite de posse do mais novo imortal da ABL.