‘Nunca vivi nada parecido’, diz chef Roberta Sudbrack sobre depressão
Ela fala pela primeira vez sobre o caso

Hoje enxergo a cozinha como uma filosofia de vida. Não foi fácil chegar a este pensamento. Isso se conquista com a experiência. Quando ganhei uma estrela Michelin no restaurante que tinha no Rio, já então na lista dos dez melhores da América Latina, disse à minha equipe: “Olha, o jornal de agora embrulha o peixe de amanhã. Se vocês ficarem ligados no prêmio, a gente vai perder o prazer de cozinhar”. E era justamente o que estava acontecendo comigo quando decidi fechar meu negócio, em 2017. Sentia que não tinha mais aquela alegria de estar ao fogão. Era tudo muito glamouroso e isso deixou de ter a ver comigo. Um dia, uma senhora na rua me falou: “Acompanho muito o seu trabalho, mas nunca terei a oportunidade de ir ao seu restaurante”. A frase me marcou demais. E guardei comigo. Sentia uma tristeza, mas não uma depressão ainda. Ela veio mesmo depois do que aconteceu no Rock in Rio daquele mesmo ano. Passou tempo e, só agora, resolvi me abrir sobre esse episódio que tanto me abalou.
Fui chamada pela organização para cuidar do espaço gourmet do festival. Estava tudo indo bem, até bater ali a fiscalização da Vigilância Sanitária. Fui duramente multada. A razão eram os ingredientes — linguiças, queijos — fornecidos por pequenos produtores do Nordeste que conhecia há anos. Eram muito bons, mas não tinham um certificado específico do município do Rio de Janeiro, que eu não sabia que era necessário. Não teve argumento, nem conversa. Apareceram quinze fiscais armados no meu estande. Foi tudo muito agressivo, um horror. A gente se sente a pessoa mais errada do mundo numa situação dessas. Sempre fui correta no que fazia, tinha um nome, e aquilo me causou um trauma imenso. Pior é que os organizadores do festival não fizeram nenhum aceno para me ajudar. Nada.
Um dos motivos para o meu sofrimento, além da decepção pelo envolvimento que tinha com os produtores do Rock in Rio, foi ver 800 quilos de comida jogados fora. Chorei junto com os garis e disse para os Medina, os donos do evento: “Vou embora e não volto mais”. E eles pediram: “Não vai, não. A Lady Gaga já cancelou. Imagina agora anunciar que a Roberta vai sair também”. Mas era uma daquelas coisas na vida em que não há jeito — estava sozinha no meio de uma crise que me doeu muito. Perdi 1 milhão de reais nessa história e acumulei uma dívida que me fez ficar sem chão. Poderia ter comprado uma briga judicial, o que teria minimizado o prejuízo financeiro. Os advogados falavam: “Isso vai ser coisa de anos, mas você vai ganhar”. Preferi não processar ninguém, mas ir à luta para mudar a lei que acabou me penalizando e achava sem sentido. Ganhei. No final, alteraram a regra do tal selo municipal. Foram meses de idas e vindas a Brasília. E eu me arrastando, emocionalmente sem forças.
A sensação que veio em seguida foi estranha. Era como se o meu corpo enfim relaxasse, dizendo: “Pronto, pode descansar”. Aí bateu a depressão para valer. Fiquei prostrada em casa, era uma exaustão sem fim, sem ânimo para nada. Confesso que o caso ainda mexe comigo, guardo o trauma. Por isso, nunca havia falado tanto assim sobre como fiquei abatida. Nunca vivi nada parecido, nem mesmo em épocas de tensão, como quando comandei a cozinha do Palácio do Planalto, durante sete anos do governo Fernando Henrique Cardoso. Apenas recentemente redescobri o prazer de cozinhar. Uns meses atrás, veio o convite para assinar o cardápio do Ocre, em Gramado, o que promoveu um retorno ao mundo das panelas e ao Rio Grande do Sul, minha terra natal. Voei para lá, a princípio, para dizer não. Mas percebi que poderia apostar ali no que mais acredito hoje: uma culinária simples, produzida à base de ingredientes locais e com o rigor que eu prezo. Já frequentei demais o universo da alta gastronomia. Agora, estou muito mais para bermuda, chinelo e liberdade.
Roberta Sudbrack em depoimento a Valmir Moratelli
Publicado em VEJA de 17 de abril de 2025, edição nº 2940