Moacyr Góes: ‘Só há dois caminhos, o da cultura ou o de andar de quatro’
Em cartaz no Rio, 'Moria' fala sobre mulheres em campo de refugiados
Um campo de refugiados localizado em Moria, na Grécia, tinha 13 mil quando foi destruído por um incêndio, em setembro de 2020. Muitas das famílias vindas da Síria, Afeganistão e Sudão foram transferidas para outro local da região, mantendo a sobrevivência precária. O drama das mulheres neste tipo de acampamento é o tema central de Moria, espetáculo de Moacyr Góes em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, no Rio. O texto, escrito pelo próprio diretor, é encenado por Claudia Lira e Tarciana Giesen. Em conversa com a coluna, Moacyr explica suas referências.
O espetáculo conta história de mulheres no maior campo de refugiados da Europa. Como você chegou nessa história? Inicialmente queria escrever um texto sobre o encontro dos apóstolos Paulo e Tiago, que é o começo de toda a cristandade. Mas aí começou a chegar muitas informações sobre perseguição aos cristãos nos dias de hoje, e comecei a pesquisar isso. Entrei no campo de refugiados de Moria, onde a perseguição é muito grande. A vida lá é uma coisa insuportável, um campo para duas mil pessoas que virou um campo para 15 mil, há perseguição às muçulmanas e cristãs. Pensei em ampliar esse texto. Criei um que são mulheres, atrizes iranianas, que fogem e, de madrugada, ensaiam uma peça sobre o encontro de Paulo e Tiago.
O quanto é importante esse ponto de vista das mulheres para se combater o machismo? Muito. Porque a gente não tem a dimensão de que quando a violência e o horror recaem sobre as mulheres existe um componente adicional terrível, que é a questão sexual. Hoje a realidade de muitas delas no mundo é de que sejam roubadas e vendidas, para virarem objetos sexuais na mão de exércitos e de grupos. Ontem eu vi umas imagens de uma feira que vendia mulheres virgens no interior do Irã. Olha que loucura. Nas comunidades do Rio muitas meninas são tratadas com violência e horror. Talvez a gente não tenha a perseguição cristã, mas temos sobre as religiões de matrizes africanas, por exemplo.
Qual seria a maior crise do mundo contemporâneo? A crise contemporânea é a que gente convive com a ideia de um mundo que acabou e ainda não convive com a ideia do mundo que se estabeleceu. O Ocidente moderno, que crê na razão, na ciência, vive conflito em relação a isso. Como pode acontecer tanto roubo, tanta intolerância, se a gente já sabe, depois de tantas coisas, que isso é um caminho terrível. A crise que a gente vive é de valores.
Não seria uma crise só no âmbito religioso. Não. O âmbito da fé me interessa muito, mas não é o único definidor. E me interessa porque é uma presença forte nas nossas sociedades, e resulta também da maneira como a gente sempre lidou. A fé, como o teatro e a arte, é uma construção humana para quem é ateu. E ela influencia na maneira como a gente vê o mundo.
Você tem religião? Não. Eu sou um miserável de um ateu (risos).
É interessante que, sendo ateu, seu objeto de pesquisa seja a fé… É incrível, é lindo, mas é muito complexo. Em nome da fé foram cometidos crimes monstruosos, e em nome da liberdade também. Então, não é sobre a fé ou a liberdade, mas o que os homens fazem.
Outro ponto da peça é o lugar do teatro nesse espaço de discussão. O quanto esse lugar é valorizado no Brasil hoje em dia? Ele é muito pouco valorizado, no entanto é muito importante. Só existem dois caminhos: o da cultura e da arte ou o de andar de quatro. A arte vem pra criar sentido. Uma sociedade sem arte é tacanha, que vai fazer com que as pessoas sejam reduzidas quase à condição animal. No Brasil a gente é muito mal tratado, enquanto artistas.
Mas há otimismo? Sim, tende a melhorar. Mas só vai melhorar mais quando a gente trouxer a discussão do quanto é importante investir em cultura e em arte. A discussão é se a sociedade reconhece a importância da produção cultural na sua construção de identidade. A gente precisa discutir o porquê a isenção fiscal para montadoras de automóvel é inquestionável e para a cultura não. Mas sou otimista.