Controverso, Silvio Santos deixa legado difícil de ser mantido na TV atual
Programas populares ajudaram o SBT a levar o povo para a grade televisiva, muito antes das transformações advindas com a internet
As mulheres sempre sorridentes e de pompons coloridos em punho, agitados para o ar, não eram meras figurantes de sua plateia. Eram “colegas de auditório”. Ele, o patrão. De terno, gravata e microfone sob o queixo. Longe de ser um “patrão” no crítico sentido marxista, Silvio Santos liderava uma horda de alegria aos domingos, popularizada ao longo das últimas décadas com a destreza de quem comanda exércitos sem armas, sem gritos. Dele, só saía “aviõezinhos” que, por sorte, podiam até ser de cem reais.
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Como o camelô virou rei dos domingos no SBT
Num país que não sabe separar público e privado, criador e criatura, vida particular e vida profissional, o telespectador não se deixa entender que o ex-camelô “Dono do Baú”, o que detinha a chave da “Porta da Esperança”, também podia ser falho. Por anos não abriu mão de um terreno para ceder ao Teatro Oficina, de Zé Celso Martinez, tão emblemático para o cenário teatral paulistano. Queria no lugar construir um empreendimento imobiliário. Também não quis fazer exame de DNA para reconhecer a paternidade de um filho, algo só conseguido pelo rapaz via meios judiciais. O mesmo Silvio que comandava quadros como “Namoro ou amizade”, soube muito bem flertar com os políticos que estavam no poder, sem qualquer distinção de ideologia. De Collor a Lula. Seu partido era sua emissora. Isso explica, em parte, a aproximação com Bolsonaro, por exemplo. E se chegou a ser dono de um império – de hotéis de luxo à marca de cosméticos – é porque lá atrás se sentou à mesa com militares que usurpavam a democracia para, enfim, obter a concessão de sua tão sonhada emissora. Nem direita, nem esquerda. Sua ideologia foi fincada no CDT da Anhanguera.
Mas o que fica não é esse “lado B” de Silvio, porque a este lado se encarregarão os livros de História e biografias comprometidas com os rastros do tempo. A Silvio, por ora, e muito justas, são as homenagens oferecidas pelo que cedeu ao povo brasileiro na TV aberta. Ao levar referências do rádio e do circo a uma iniciante indústria televisiva, nos idos da segunda metade da década de 1970, colocou o povo em seu devido lugar. Na plateia participativa. Formada por “colegas” vindas de caravanas de tudo quanto é canto, para dar uma cara de Brasil na tela que ele queria popularizar. No SBT ganhou forma um Brasil diferente do que se via na logo concorrente direta, a TV Globo. Um Brasil mais despojado, sem amarras ou scripts – que ria no banco de uma praça ou trocava selinhos no sofá de uma espevitada senhora.
‘VAMOS SORRIR E CANTAR’. Fez o país machista aplaudir, nos domingos à noite, animados shows de drags. Com a mesma habilidade, colocou no ar o primeiro beijo gay numa novela brasileira (Amor e revolução, em 2011). Descobriu que o Big Brother estava para estrear na Globo e correu para dar ao público a sua Casa dos Artistas. Fez muita gente sonhar em ser milionário com as perguntas do Show do Milhão. Entendeu que os jovens precisavam ganhar a TV dando a Serginho Groisman o Programa Livre. Entre duas loiras rivais, Xuxa na Globo e Angélica na TV Manchete, pôs a morena Mara Maravilha a cantar curumim iê iê. Importou o melodrama raiz das novelas mexicanas, sabendo que o povo gosta de uma lágrima diária. E dá-lhe Maria do Bairro. Reprisou Chaves e Chapolim até dizer chega. Quem mais poderia passar incólume ao cantar “a pipa do vovô não sobe mais”?
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Sempre tendo o povo como foco, também errou. Sensacionalizou o crime com o Aqui Agora. Permitiu as banheiras de sabonetes do Domingo Legal, numa década de erotização na boquinha da garrafa diante do Faustão, na Globo, em mesmo degrau. Não ajustou o humor ultrapassado de A Praça é Nossa. Fez de Casos de Família uma encenação além do aceitável. Mais recentemente, criou o Fofocalizando e andou dando comentários machistas e homofóbicos difíceis de reverter em argumentos.
‘MA OH ÊEE’. Silvio sai de cena no auge da transformação da TV aberta, quando o streaming dá as caras gritando por diversidade como moeda de troca pela audiência de multiplataformas. E é por isso que seu legado será difícil de ser mantido na atual conjuntura, quando modelos de negócios e sociabilidade comunicacional caminham para trás dos filtros de redes sociais. Quando todos, mais e mais, querem “parecer ser algo”, Silvio ensinou “qual é a música”. Nela, o verso da simplicidade é sustentado por uma rima, a da autenticidade. Na era do cancelamento, não há ninguém hoje na TV aberta destemido o suficiente para dar continuidade a este formato ritmado de controversas atitudes. Silvio podia até ‘Topar’ Tudo Por Dinheiro, mas sabia equilibrar o que o povo quer e o que o povo não precisa. Mesmo que, por vezes, errasse na dose.
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Em qualquer livro sobre história da televisão brasileira que venha a ser escrito, seu nome será um longo verbete, em letras garrafais, pela contribuição controvertível que apenas os destemidos são capazes de pagar. A comunicação brasileira deve a Silvio Santos a popularização de sua grade televisiva. Sem ele, a TV aberta seria muito mais escandinava do que ainda é. As “colegas de auditório”, seu exército de pompons, bem que avisaram, nesta nada silenciosa revolução via radiodifusão… Silvio Santos “veio” aí.