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‘A esquerda também é transfóbica’, diz Camila Sosa Villada na Flip

A escritora travesti conversa com VEJA sobre questões que envolvem seus trabalhos

Por Valmir Moratelli Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 27 nov 2022, 11h00

Na noite de quinta-feira, 24, algo inesperado ocorreu na programação da FLIP. Até aqui a mesa com a argentina Camila Sosa Villada foi mais procurada e a escritora mais festejada da programação – antes, é claro da vencedora do prêmio Nobel Annie Ernaux, que se apresentou neste sábado, 26.  A última e única vez que a FLIP havia convidado uma travesti foi em 2010. Em conversa exclusiva com a coluna, Camila falou de sua relação com o tema que atravessa seus livros.

VIOLÊNCIA DA LINGUAGEM. “A primeira violência é a da linguagem. É algo muito violento que nos impõe e que recebemos sem termos pedido. A partir daí tudo que é escrito e falado se torna uma coisa herdada a partir da violência. Falo daquilo que conheço, que vejo e sinto. Não posso não falar do sexo sem ter sido uma trabalhadora sexual e tendo aprendido muita coisa que não é ensinada em nenhuma família ou universidade ou religião, e que tem a ver com o perigo que os outros significam, o perigo que é se ligar com alguém. É viver tendo a consciência de que o outro é sempre uma possibilidade de violência. Não posso evitar escrever sobre isso”.

HISTÓRIA. “As travestis são pré-colombianas, não somos formas contemporâneas de existências. Os espanhóis encontraram aqui, ao chegarem, múltiplas travestis nas sociedades pré-colonização. A alteração de linguagem, a invenção de palavras, é uma forma de lidar com a violência da linguagem que só permite a compreensão de dois gêneros, ou seja, a binaridade. O ideal seria pensarmos na linguagem própria de cada personagem. Minha mãe dizia que eu, quando criança, ressignificava cada coisa de uma maneira. O lápis, o copo, o livro… tudo tinha uma maneira especial de falar. É uma linguagem que me fazia já pensar de forma especial a existência sem nem me dar conta disso”.

RELATOS PESSOAIS NA FICÇÃO. “É assim com todos os escritores, pensar e não inventar tudo, porque não há nada novo a ser criado, tudo está aqui. Os escritores usam suas memórias para escrever. Não estamos falando dos outros, estamos sempre falando de nós mesmos. Minha preocupação não é tanto pelo que eu exponho de mim, mas pelo que tipo de linguagem posso usar. Não tenho nenhum conflito, é um personagem a mais a falar.

INSPIRAÇÃO. “Todo discurso é artificial. Minha inspiração vem de imagens, mas imagens de recordações em movimento. Talvez, até mais, são como filmes. De quando estive em Córdoba, para entrar na universidade, ou como as experiências nos Estados Unidos”.

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PROCESSO DE ESCRITA. “Nada terapêutico, nada doloroso, nada disso. Foi uma experiência criativa, um exercício literário, um trabalho que começou como um exercício de texto teatral”.

TRANSFOBIA POLÍTICA. “Nós criamos a diversidade como maneira de existir. Isso significava nossa força, nossa particularidade, nossa força. Aprendemos a sobreviver diante de quem queria nos matar todos os dias. Ao surgir um governo que não nos quer incluídas, não me parece um problema, porque já é assim desde antes de surgir um governo como esse, como o do Brasil de Bolsonaro, por exemplo. Eu não confio em governo de direito, tampouco de esquerda. A esquerda também é muito transfóbica. Me preocupo menos com o governo e mais com as ações práticas que nos unem, que nos fortalecem como comunidade”.

SORORIDADE. “A palavra da moda da Argentina é sororidade. E que não tem nada de feminista. Mas é algo relativo de pertencimento e ajuda. Se falta algo a você, tem alguém do seu lado, se te falta dinheiro, tem alguém do seu lado, e assim vai. A ideia de comunidade que vem de política tem um atravessamento estranho. É uma visão pessimista (risos). Sou a mais pessimista de todas!”.

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DIVERSIDADE, PERO NO MUCHO. “As comunidades LGBTQIA+ são transfóbicas. As travestis não são ‘comerciais’, por exemplo. Não aparecem na inclusão que estes grupos prezam. A meu ver isso tem a ver porque a política se mete na vida das pessoas, tendemos a reproduzir modelos sociais em todas as esferas. Não vejo nada autêntico nas lutas que não incluem, inclusive, as travestis velhas. Foram elas as primeiras a promover marchas para manifestar direitos de igualdade quando se fala em diversidade. E sempre são esquecidas. A reparação histórica a elas, quando se fala da ditadura argentina, é a última a ser lembrada”.

BRASILEIRAS. “Liniker, Pepita, Linn da Quebrada… Adoro. Mas onde estão as demais? Sou hoje uma escritora bastante conhecida no país, vendo muito mais livro do que um escritor ou escritora cis, mas não sei se estamos oferece do algo novo, algo absolutamente transparente com o que somos. Estamos tratando de sobreviver, de nos salvar. As travestis estão chegando ao final do mês e isso já me parece uma importância. Eu sou uma travesti que vende muitos livros, mas há lutas por trás disso”.

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Camila Sosa Villada
Camila Sosa Villada – (Valmir Moratelli/VEJA)
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