Como nascem os privilégios
Livro de Bruno Carazza retrata como as distorções do funcionalismo público acentuam a desigualdade
De tempos em tempos, o Brasil é sacudido por um terremoto de revolta contra os privilégios de uma elite que parece viver fora da realidade do País. Nos anos 1920 foi o tenentismo; nos 1960 surgiu Jânio Quadros com sua “vassoura” e, logo depois, o regime militar que iria “limpar o Brasil”; no final dos anos 1980, Fernando Collor foi eleito jurando acabar com os “marajás”; e, mais recentemente, a Lava-Jato pretendia “ressetar o País”. Essas rebeliões geraram movimentos políticos que até agora haviam sido estudados pelas suas consequências, sejam os abalos institucionais ou o avanço do populismo extremado. Na trilogia O País dos Privilégios (editora Companhia das Letras, R$80 na versão em papel e R$44,90 a eletrônica) o economista Bruno Carazza vai nas causas de o Brasil ser um terreno tão fértil para as revoltas anti-elite.
No primeiro volume, lançado neste mês, Carazza exibe como a elite do serviço público – juízes, procuradores, congressistas, advogados públicos, militares, auditores fiscais, etc. – capturam parte do orçamento público em benefício próprio.
Didático, Carazza relata como grupos poderosos aprimoraram os instrumentos para extrair privilégios do Estado em prejuízo do resto da sociedade. Em um momento de crise fiscal, no qual o governo tenta ainda sem sucesso reduzir a trajetória do déficit público, os exemplos são pornográficos: 93% dos magistrados tiveram no ano passado rendimento médio mensal acima dos subsídios dos ministros do STF, contrariando a regra constitucional que impõe um teto nos salários do funcionalismo. Os juízes julgaram a favor de si mesmos como legais algumas brechas para classificar como fora do teto auxílios variados, vendas de dias de férias e outros penduricalhos. Só nos últimos sete anos, essas manobras custaram à sociedade R$ 39,6 bilhões. Ato contínuo, os membros do Ministério Público passaram a dar para si privilégios iguais aos juízes. Já os advogados públicos passaram a receber honorários extras quando vencem ações, os chamados honorários de sucumbência, o que aumentou os gastos da União com a classe em R$ 8,5 bilhões desde 2018.
Cada categoria tem uma engenharia particular para obter vantagens, mas são todas iguais na explicação: não estão recebendo privilégios, mas assegurando prerrogativas porque, afinal, exercem uma função essencial para o Estado. “Ninguém discute que o Judiciário é fundamental para a democracia ou que o país quebraria sem o trabalho eficiente dos auditores da Receita Federal. Só que isso também é verdade para os funcionários do Sistema Único de Saúde, que salvaram milhões na pandemia de covid, ou os servidores do Ibama que atuam para impedir a destruição da Amazônia”, compara o autor.
É por essa radiografia honesta que O País dos Privilégios dialoga com dois outros excelentes livros lançados recentemente: Extremos – Uma Mapa para entender as desigualdades do Brasil, do economista Pedro Fernando Nery, e Os Ricos e os Pobres: o Brasil e a Desigualdade, do sociólogo Marcelo Medeiros. Refletindo sobre as causas da desigualdade brasileira, Nery e Medeiros colocam na agenda um debate essencial para o futuro do país. Carazza mostra como essa desigualdade nasce, cresce e finca raízes.
Em seu clássico O Antigo Regime e a Revolução, o historiador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) afirma que o desprezo popular pela nobreza na França pré-revolucionária se explicava pela sua perda de função. Historicamente, os nobres eram os responsáveis pela defesa do território e pela aplicação da Justiça, mas na França do século 18 haviam se tornado um peso. Isso tornava seus privilégios menos toleráveis e sua prepotência mais ofensiva. No livro “Ruling the Void: The Hollowing Of Western Democracy”, o cientista político irlandês Peter Mair (1951-2011) usa a expressão “síndrome de Tocqueville” para definir os sinais de esvaziamento da legitimidade dos partidos tradicionais e a possibilidade de o povo passar a achar que políticos não mais os representavam.
Lançado poucos anos antes do furacão Brexit e Trump virar o mundo de cabeça para baixo, o livro de Mair fala do mesmo sintoma registrado por Carazza: os privilégios de uma elite egoísta e distante do cotidiano da população podem ser o tremor que causa um terremoto.