The Chosen e mais: o entretenimento cristão mostra sua força global
Sucesso da série bíblica é exemplo de um fenômeno que vai da TV à literatura e atende a uma demanda crescente no Brasil e no mundo

Diante dos fariseus, Judas explica as razões pelas quais vai trair Jesus. Contraditório, diz que, ao que tudo indica, Ele é, sim, o aguardado Messias dos judeus. Os poderosos ficam confusos e perguntam: por que pensa assim? “Porque eu vi muita coisa”, diz Judas. Mas, então, por qual razão entregaria o próprio mestre? “Porque eu não vi o suficiente”, responde o discípulo, com um melancólico olhar de decepção. A cena é embalada pelas batidas graves da canção folk God’s Gonna Cut You Down (Deus vai te derrubar, em português), com a voz rouca inconfundível do cantor Johnny Cash. Não adianta procurar o diálogo dramático na Bíblia — nem a faixa musical entre os hinos entoados em igrejas. A dramatização moderninha do ponto de virada da história cristã, que levará à crucificação de Jesus, é uma criação de The Chosen — Última Ceia, quinta temporada da popular série bíblica, que exibe atualmente os dois primeiros episódios nos cinemas. No fim de semana de estreia, a produção americana arrebanhou 300 000 espectadores no Brasil, arrecadando 6,6 milhões de reais. A estratégia de lançar capítulos primeiro nos cinemas e só depois no streaming, adotada desde a terceira temporada, foi uma sacada mercadológica: mais de 1 milhão de ingressos foram vendidos aqui com as temporadas anteriores. A bilheteria global soma 95 milhões de dólares.
Os números impressionam, mas não surpreendem. Com qualidade acima da média no gênero bíblico, a série é o maior símbolo do vigor renovado do entretenimento cristão na atualidade (leia o quadro). Desde a estreia, em 2019, a trama que retrata a vida de Jesus experimenta o milagre da multiplicação: no streaming, já são 800 milhões de visualizações dos episódios que compõem as quatro temporadas iniciais — elas podem ser vistas no aplicativo gratuito da série e nas plataformas Netflix e Prime Video, da Amazon. O Brasil é o segundo país que mais assiste ao programa, atrás só dos Estados Unidos. As razões para o sucesso de The Chosen são várias, entre elas o apelo entre cristãos de diversas vertentes, um feito num grupo tão fragmentado. A série se mostra capaz, ainda, de atrair curiosos — 30% do público se identifica como sem religião.
O aumento na oferta de títulos do filão, que saltou especialmente na TV e no cinema, reflete uma demanda esquecida, suprimida — e, principalmente, rentável. Com 2,4 bilhões de seguidores no mundo, o cristianismo fincou raízes profundas no imaginário popular, até dos que não partilham da religião. As trajetórias de Jesus ou de sua mãe, Maria, são exemplos lapidares da disseminação da narrativa da fé cristã e de suas vertentes — o filme Virgem Maria, lançado em dezembro pela Netflix, foi visto 13,2 milhões de vezes em sua primeira semana no ar. Para além de adaptações bíblicas, tramas sobre perdão, família e superação permeiam a produção cultural desse substrato — atraindo audiências sensíveis em tempos de incerteza. “É comum em igrejas evangélicas a presença de pessoas que superaram vícios, traições conjugais, entre outros dramas pessoais”, analisa o antropólogo Raphael Khalil, coautor do livro Crentes: Pequeno Manual sobre um Grande Fenômeno, da editora Record. Sendo assim, gatilhos como cenas de sexo e nudez, de violência e de abuso de substâncias costumam ser evitadas para não atiçar nenhum velho pecado — muito menos criar novos.

A guinada conservadora mundial fez também com que gigantes do audiovisual se rendessem à necessidade de se adequar. Um exemplo notável e que diz muito sobre essa nova realidade no próprio Brasil foi o freio de arrumação que a TV Globo deu recentemente em suas novelas. A base para essa virada teria vindo da pesquisa O Brasil no Espelho, elaborada pelo instituto Quaest em 2024. O estudo revelou que 51% da população se considera conservadora nos costumes. Os adultos brasileiros se dizem hoje ainda mais religiosos e assustados com questões sociais, econômicas e políticas — e, claro, com a violência. Um efeito colateral recente dessa visão foi o encerramento da parceria da autora veterana Gloria Perez com a emissora para a criação da próxima novela das 9, que substituiria Vale Tudo. Sob o título provisório Rosa dos Ventos, a trama rejeitada tratava de um aborto forçado, resultado de uma traição, e uma das protagonistas ainda estaria envolvida com política — combinação no mínimo explosiva.
Muito mais sintonizadas com os novos tempos, as produções cristãs se beneficiaram da força do streaming e do cenário independente proporcionado por ele. The Chosen, por exemplo, nasceu a partir de um crowdfunding virtual, que levantou 10 milhões de dólares. Atualmente, o orçamento da série bíblica está na faixa dos 50 milhões por temporada, valor ainda oriundo de contribuições de fãs, mas agora com o reforço de outras fontes, como produtos paralelos (caso de livros e podcasts) e o pagamento de plataformas e canais de TV que querem a série em sua programação — no Brasil, além de Netflix e Prime Video, o SBT também transmite a atração. “Dá para ver o dinheiro na tela. Todos os dólares que levantamos sem um grande estúdio por trás”, afirmou a VEJA o ator Jonathan Roumie, que interpreta Jesus. “Essa é nossa temporada mais ambiciosa, a maior e a mais emotiva até aqui”, completa ele (leia a entrevista).
Para contornar a falta de atenção de Hollywood, surgiram novas produtoras e distribuidoras, voltadas para o segmento. Nos Estados Unidos, a Angel Studios virou referência com o controverso Som da Liberdade, um thriller sobre tráfico sexual na Colômbia com o ator Jim Caviezel, o Jesus de A Paixão de Cristo — filme de 2004 dirigido por Mel Gibson, que, aliás, voltará ao tema numa sequência, em 2026. Também da Angel Studios, a animação O Rei dos Reis, outra centrada na história de Jesus, figura neste momento entre os longas mais vistos nos cinemas brasileiros: segundo a Comscore, só na pré-estreia arrecadou 377 000 reais. No cenário nacional, destaca-se a produtora e distribuidora evangélica 360 WayUp, que em quinze anos de atuação soma 40 milhões de espectadores e é o nome por trás de filmes recentes como Fé para o Impossível, lançado em fevereiro, com Vanessa Giácomo e Dan Stulbach no elenco — a produção conta a história real de Renee Murdoch, missionária americana que sobreviveu a uma agressão grave de um morador de rua no Rio de Janeiro. “O objetivo é que o Brasil se torne referência mundial do cinema cristão”, diz o criador da empresa, Ygor Siqueira.
O que antes era restrito a um nicho vem extrapolando seu alcance (confira o quadro). No Spotify, a estrela gospel gaúcha Isadora Pompeo ficou entre os dez artistas mais ouvidos no país com a faixa Bênçãos que Não Têm Fim em 2024. Também no ano passado, o livro mais vendido no Brasil foi o motivacional Café com Deus Pai, do pastor catarinense Junior Rostirola. Nos três últimos anos, o mercado editorial adotou em seus catálogos títulos da chamada clean fiction, ou “ficção limpinha”. Em sua maioria, são romances tradicionais entre jovens que buscam o amor verdadeiro. De 2023 para 2024, as vendas do segmento dobraram na editora Thomas Nelson. Segundo a diretora do setor, Brunna Prado, esses autores surgiram primeiro em plataformas de autopublicação, como Wattpad e Kindle Unlimited, antes de chegar ao livro em papel. “Assim como ocorre com movimentos de representatividade negra, feminina ou LGBTQIA+ na literatura, essa demanda nasceu do desejo legítimo de um grupo social de ser refletido na ficção de forma não caricata”, afirma Brunna. “São livros que oferecem um entretenimento saudável, que não fere os valores do leitor”, reforça Arlene Diniz, autora que coassina o best-seller juvenil Corajosas, da Mundo Cristão, que soma 100 000 exemplares vendidos.

A mesma designação de “ficção limpa” pode ser aplicada aos exitosos doramas, ou k-dramas — produções sul-coreanas que dominaram o streaming, chegando até mesmo ao Globoplay, plataforma da Globo, com suas histórias certinhas e inspiradoras. A Netflix vem surfando como poucos no fenômeno. No momento, colhe a audiência estrondosa de 377 milhões de horas assistidas da adorável Se a Vida Te Der Tangerinas…, que segue a história de um casal ao longo de décadas. A mesma lógica do entretenimento “sem risco” comportamental explica a ascensão das novelas turcas, que invadiram a grade da TV brasileira e dão índices de audiência notáveis. Emissora conhecida por suas novelas bíblicas, a Record agora tem como carro-chefe de seu horário nobre o folhetim Força de Mulher. Na trama filmada em Istambul, a protagonista Bahar, vivida pela atriz Özge Özpirinçci, é um para–raios de tragédias: órfã na infância e viúva na vida adulta, ela precisa criar dois filhos enquanto enfrenta dramas sociais e de saúde. A superação e o final feliz, claro, são regra nesses folhetins mais recatados.
Refletindo as nuances peculiares do público ao qual se destina, o entretenimento cristão não é um consenso. As críticas, por sinal, residem especialmente na visão edulcorada de uma vida que não reflete a realidade. Autor do best-seller O Deus que Destrói Sonhos, o catarinense Rodrigo Bibo, influenciador cristão e criador do podcast Bibotalk, é um cinéfilo ávido que representa a parcela de cristãos que não se interessa por filmes religiosos. “São tramas que considero fracas, com temáticas estereotipadas. O ateu, por exemplo, é sempre o vilão”, afirma. “Para mim, não condiz com a própria Bíblia.” Eu seu livro de nome chamativo, Bibo refuta a teologia da prosperidade, na qual a fé é atrelada ao sucesso pessoal e financeiro. “A realidade é que a maioria das pessoas não vive grandes milagres. E tudo bem.” O autor, porém, aponta que The Chosen seria um ponto fora da curva. “Pelo que eu vi, achei bem-feito.”

Para o americano Dallas Jenkins, criador da série, o segredo da produção está em encontrar os melhores talentos — seja eles quem forem. No meio evangélico, por exemplo, é comum que todos os envolvidos em filmes, séries e músicas sejam adeptos da mesma religião — o que não necessariamente os torna bons profissionais. “Fomos atrás dos melhores em cada área”, disse Jenkins a VEJA. Assim, o elenco é composto por tipos variados. Roumie, o Jesus pop, é um católico fervoroso, descendente de sírios; Luke Dimyan, que vive Judas, é cristão copta, vertente egípcia do cristianismo; Paras Patel, que dá vida a Mateus, é filho de indianos, enquanto Shahar Isaac, que interpreta Pedro, é israelense — ambos não comentam qual religião seguem, uma estratégia para distanciar suas vidas pessoais dos personagens.
Em 2023, uma cena de bastidores causou controvérsia na parcela fundamentalista do público: um cinegrafista tinha na câmera uma pequena bandeira do orgulho gay. Jenkins foi posto na parede para se posicionar sobre o flagra, ao que respondeu, centrado: “Nossa equipe tem centenas de pessoas, não obrigamos ninguém a seguir a minha fé”. Quanto maior fica, mais complexa The Chosen se torna. Prevista para ir até a sétima temporada, a próxima fase começa a ser filmada neste ano e vai retratar a acachapante cena da crucificação. “Com certeza será desafiador, física e emocionalmente. Como ator, será o ápice”, diz Roumie. Além da luz e das câmeras, a fé agora é elemento essencial nos sets.
Com reportagem de Amanda Capuano
Publicado em VEJA de 17 de abril de 2025, edição nº 2940