‘Pai’ de Chucky, Don Mancini transforma sua cria em arma contra homofobia
O roteirista, expoente do terror trash e militante LGBTQIA+, dá novos ares ao brinquedo assassino na série do Star+
A infância do americano Don Mancini não foi brinquedo, não. Gay assumido desde a tenra idade, ele enfrentou a intolerância do pai dentro de casa. Na escola, sofria bullying nas mãos dos colegas. “Eu experimentei esse tipo de coisa enquanto crescia. Nos anos 1970, tudo era muito pior”, contou Mancini a VEJA. Hoje, o roteirista e diretor combate a homofobia com sua maior criação: Chucky, o notório boneco assassino surgido nos anos 1980 e convertido em ícone do terror trash. Após sete filmes e infindáveis reinvenções, em meio às quais ganhou uma noiva e até um filho, o brinquedo possuído pela alma de um serial killer chegou recentemente ao streaming. Chucky, a série disponível no Star+, da Disney, reavivou o culto pop pelo personagem — e é, de longe, a produção da franquia em que Mancini se revela mais autobiográfico. O protagonista, Jake (Zachary Arthur), é um menino gay de 14 anos que passa por abusos físicos e emocionais. “No primeiro episódio, Jake é agredido e confrontado pelo pai por ser gay. Já passei por algo parecido em minha vida. Essa cena é bem pessoal e foi difícil de gravar”, diz Mancini.
O roteirista de 58 anos concebeu seu filhote assassino quando era estudante de cinema. A princípio, quem diria, Chucky seria um símbolo da luta contra o consumismo infantil. “Quando eu era garoto, meu pai trabalhava com publicidade. Cresci dentro desse universo e vi quanto era cínico. Quis fazer uma sátira sombria sobre como a propaganda pode afetar as crianças”, afirma Mancini. O suposto elemento crítico, no entanto, logo foi sobrepujado pelo que os filmes de Chucky se revelaram de fato: uma diversão desmiolada, cheia de sangue e detalhes inacreditáveis.
Seria injusto, porém, jogar as histórias de Chucky na vala comum do trash — aquilo que é tão ruim que acaba sendo engraçado. As produções de Mancini bebem do grotesco, sim, mas também exalam uma ironia típica das comédias absurdas (e impagáveis) do diretor John Waters — de quem ele é fã, e o qual já fez uma ponta hilária em um filme de Chucky. O criador tem uma teoria para explicar a resiliência de sua criatura na memória de várias gerações. “Temos uma reação primal aos bonecos, enraizada no fato de que eles parecem humanos, mas são uma distorção de nós”, divagou em entrevista recente.
Chucky: Complete 7-Movie Collection
Para olhares afiados, o componente gay nos filmes de Chucky nunca passou despercebido. Após o filme inicial, Brinquedo Assassino (1988), que foi feito com orçamento modesto de 9 milhões de dólares e faturou 44 milhões em bilheteria, a franquia seguiu uma trilha errática — e Mancini só reencontrou a rota do sucesso ao investir abertamente na temática LGBTQIA+. O Filho de Chucky (2004) destacava um jovem de gênero fluido. Os dois filmes mais recentes, A Maldição de Chucky (2013) e O Culto de Chucky (2017), tinham personagens lésbicas e bissexuais. Na nova série, Mancini vai além: promove Chucky a vingador (ainda que maluco) dos jovens reprimidos contra seus algozes homofóbicos. No primeiro episódio, o boneco mata o pai insensível de Jake eletrocutado. O autor inventa, assim, uma forma peculiar de catarse freudiana.
Com essa receita, Mancini virou estrela do “terror queer” — gênero que une sustos, riso e universo gay. Nascido em Richmond, na Virgínia, ele hoje vive em Los Angeles e é figurinha festejada em eventos como a Comic Con e na comunidade LGBTQIA+ americana. Curiosamente, veio ao Brasil tempos atrás junto com seu jovem namorado, Junior Moro, de Mato Grosso. O pai de Chucky não brinca em serviço.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768
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