O que sucesso de ‘Pantanal’ revela sobre o futuro das novelas
Remake da trama memorável de 1990 mostra a realidade atual dos folhetins: eles estão tomando um banho de loja para manter sua força na selva digital
Pouco antes da pandemia, lá pelo fim de 2019, a Globo fez uma constatação amparada em pesquisas: os espectadores brasileiros estavam cansados das dificuldades da vida, da crise econômica à criminalidade, passando pela intolerância na política. Diante disso, era natural que novelas das 9 como Amor de Mãe, então em exibição, não provocassem identificação, mas melancolia e enfado ao estampar essa realidade dura. Assim, quando surgiu o desejo de uma homenagem ao noveleiro Benedito Ruy Barbosa, que anunciava sua aposentadoria às portas dos 90 anos, veio uma ideia que unia o útil ao agradável: e se a emissora investisse em um remake de Pantanal, a popular trama de 1990 da extinta Manchete com que Barbosa fora algoz da própria Globo no ibope?
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O autor já tinha desatado o principal nó que impedia o projeto, ao recuperar nos tribunais, em 2016, os direitos sobre sua criação. Embora sempre sonhasse em ver Pantanal na Globo, Barbosa revelou-se duro na queda, e ciumento (com razão) de seu filhote. Foram meses de muita conversa até ele topar. Pesou aí a escolha de seu neto, Bruno Luperi, para cuidar do roteiro da adaptação (leia a entrevista). “Foi uma negociação longa”, diz um diretor da emissora. “O Bruno é muito jovem, mas tem as novelas na veia e uma indiscutível interlocução com o avô.” O fator financeiro deu o empurrão final: Barbosa recebeu da Globo uma bolada na casa dos 5 milhões de reais pela licença para fazer a nova Pantanal. Negócio fechado, ele passou a atuar como um consultor informal do neto no remake.
Repetindo a magia que arrebatou o país 32 anos atrás, Pantanal promoveu as pazes entre as novelas das 9 e o público após um período de, digamos, frieza na relação. Com 28 pontos de média nacional e ainda longe do final (previsto para outubro), já é a maior audiência da Globo no horário desde o sucesso A Dona do Pedaço, do autor e colunista de VEJA Walcyr Carrasco (leia na pág. 83), em 2019. O recorde de público até o momento foi registrado em 13 de junho, quando a trama bateu 33,1 pontos com a morte do vilão Levi (Leandro Lima), devorado por piranhas. É o tipo de cena que mostra o que estava faltando nas novelas para aplacar o cansaço das pessoas, tão agravado pela pandemia. Com suas paisagens e seu mundo rural rústico, mas sedutor, Pantanal oferece uma fuga para espaços amplos e para uma natureza indomável — uma viagem providencial para milhões de cidadãos que ficaram trancados em casa por quase dois anos. A tensão romântica entre Juma (Alanis Guillen), a mulher selvagem capaz de virar onça, e o mocinho Jove (Jesuíta Barbosa), que usa de seu jeito meigo para amansar a fera, complementa um cenário idílico em que o Brasil do agro e o Brasil urbano se estranham, mas saem de mãos dadas.
Telenovela: um olhar do cinema
Pantanal é só a mais recente demonstração, enfim, de como as novelas são um termômetro sociológico do país. A reinvenção da velha trama espantou a sensação de que os folhetins viviam uma inexorável decadência, amplificada pela overdose de reprises em razão do coronavírus: faltava só uma novela boa no ar. Mesmo nas piores crises, a trama das 9 nunca deixou de ser a maior referência da TV no país: Pantanal já foi vista por 151 milhões de pessoas (leia o quadro acima). Mais que isso, cruzou o rubicão que separa os hits ligeiros de um verdadeiro fenômeno ao aumentar o interesse pelos folhetins entre os homens, a classe AB e — façanha mais desafiadora — os jovens. “A Globo não compete mais só com as TVs abertas, mas com canais pagos, streaming, celulares. Um programa que atrai maciçamente os jovens é muito importante”, diz Amauri Soares, diretor de programação da rede. “Minha filha de 14 anos fala: ‘Papai, agora minhas amigas sabem quem você é’. Quer dizer, essa geração está acompanhando a novela”, comemora o ator Marcos Palmeira, presente nas duas versões.
Na origem, a novela foi um presságio do que aconteceria com a Globo décadas adiante: até então reinando absoluta, ela viu pela primeira vez seu domínio ameaçado por uma rival. Para Benedito, uma doce vingança. Ele foi para a Manchete após ter a ideia recusada em sua antiga emissora. A nova Pantanal, agora um produto da Globo, chega em um momento pós-pandêmico que apresenta um desafio mais complicado. Para sobreviver na selva do entretenimento digital, o remake teve de tomar um banho de loja que diz muito sobre os rumos das novelas no futuro (leia o quadro abaixo). A ascensão das séries e o reinado do streaming criaram uma necessidade de adaptação dos melodramas. Acompanhando o ritmo corrido da vida das pessoas, as novelas ganharam mais velocidade — as intermináveis cenas de paisagens com jacarés e tuiuiús do folhetim de 1990 deram lugar a tomadas não menos cinematográficas, mas bem mais econômicas.
As tramas em si também tendem a se tornar mais enxutas. Hoje dispondo de catálogos sem fim para percorrer na Netflix e outros serviços, o espectador já não tem tolerância com a chamada encheção de linguiça em tramas de quase 200 capítulos — na última semana, ao reduzir o ritmo dos acontecimentos, Pantanal viu sua audiência patinar. Para além da tradicional briga pelo ibope, porém, a novela tem feito a lição de casa direitinho em uma área crucial: a guerra pelos corações e mentes nas redes sociais.
Se a repercussão sempre foi atributo estratégico para qualquer folhetim, o antigo papo de botequim agora se passa no Twitter. A Pantanal original já era um manancial de temas capazes de gerar debate. Mas a versão de Bruno Luperi inaugura uma “novela 3.0”, feita para repercutir nas redes. Desde a estreia, em março, foram mais de 2 milhões de tuítes sobre a trama, de memes a ships (torcidas) de casais, gerando 329 milhões de visualizações. “Pantanal é campeã de debate no digital por causa das tramas, da paisagem e por ser um remake. A gente vê um encontro de gerações entre pais, filhos e avós”, diz Soares.
Carismática e cheia de sacadas inteligentes para uma dona de casa de fazenda, Maria Bruaca (Isabel Teixeira) é a personagem que mais tem bombado nas redes. A esposa de Tenório (Murilo Benício) escancara o feminismo de araque da filha moderninha e conquistou de vez o público na cena em que pegou nas partes íntimas do peão Alcides (Juliano Cazarré) e soltou a cantada: “Nossa, ‘Arcides’. Não sabia que ‘ocê’ andava armado”. Publicada no perfil da Globo no Twitter, a cena foi visualizada só ali mais de 645 000 vezes. Na vida real, Isabel — filha do compositor Renato Teixeira, presente na trilha da primeira novela — prefere um linguajar mais intelectualizado para analisar o êxito da personagem. “Nós precisamos ver as histórias dos outros para poder nos compreender”, teoriza.
Num cenário de concorrência acirrada com o streaming, a Netflix e a HBO Max já se movimentam para lançar seus folhetins nacionais — e a Globo tem de se equilibrar entre dois mundos. De um lado, a exibição diária, à moda antiga, no horário nobre. De outro, a busca pelo espectador que vê ficção televisiva em maratonas no streaming. A emissora fez um teste positivo ao lançar a novela Verdades Secretas 2 direto na plataforma Globoplay, com direito a cenas mais apimentadas. Após Pantanal, virá outra experiência: enquanto uma trama de Gloria Perez vai substituir a atual novela na TV, uma história de João Emanuel Carneiro — da inovadora Avenida Brasil (2012) — será lançada somente no streaming, em outubro. Todas as Flores terá duas partes e um total de 85 capítulos. “É estimulante ter mais liberdade para explorar o erotismo e temas contundentes”, diz Carneiro.
Enquanto isso, no horário nobre sujeito à classificação indicativa, a nova Pantanal fica a dever à antiga em um quesito: é uma novela quase sem nudez. “Essa versão é mais comportada. A Manchete era uma emissora sensual. A Globo nunca precisou disso”, diz o violeiro Almir Sater, presente nas duas encarnações da trama — e que agora contracena com o filho Gabriel Sater, que faz o endiabrado peão Trindade. As fotos publicadas pelo elenco nas redes dão a entender que a vida é bem mais divertida nos bastidores das gravações na região de Nhecolândia, em Mato Grosso do Sul — interrompidas recentemente, aliás, por um surto de Covid-19 na equipe. Em meio ao calor de mais de 40 graus, Jesuíta, Alanis e companhia curtiam a vida rural e os banhos de rio. “Quando nos juntamos, é um boom de prazer, alegria, criatividade e respeito, acima de tudo. É muita troca, intimidade”, diz a intérprete de Juma. “A gente se fez família aqui, um cuidando do outro”, diz o ator que faz o sensível e fluido galã Jove. Do outro lado da tela, o público reage com empolgação a tanta empatia.
Publicado em VEJA de 6 de julho de 2022, edição nº 2796
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