‘Ninguém Pode Saber’: thriller da Netflix é vício difícil de largar
Série com Toni Collette lidera ranking da plataforma no Brasil ao narrar um peculiar drama entre mãe e filha
A vida de Andy (Bella Heathcote) na pacata – ou melhor, tediosa – Belle Isle, no Sul dos Estados Unidos, em nada se parece com o que um dia ela planejou para si. Trabalhando na central de atendimentos da polícia, a moça havia deixado a cidade, mas retornou quando sua mãe Laura (Toni Collette) teve câncer. E por lá se instalou, acomodada e preocupada com a solidão e a fragilidade da progenitora, uma fonoaudióloga de poucos amigos. Andy fica, com razão, bastante chocada no primeiro episódio de Ninguém Pode Saber, série que virou hit na Netflix: ela descobre que sua mãe é muito, mas muito menos frágil do que parece – e que sua solidão é mais profunda do que ela pode almejar corrigir.
Baseado no best-seller da autora de 51 anos Karin Slaughter – nome popular da literatura policial, mas que até agora não tinha uma adaptação no ar –, a série é envolvente, tem um bom elenco e se esquiva de criar reviravoltas sem motivo para enganar o espectador. A produção, porém, pesa a mão em truques típicos da era da maratona no streaming, no qual os episódios são embalados para prender a atenção do público. Os ganchos – nome dado aos finais surpreendentes e que ficam em aberto entre um episódio e outro – são abundantes. E as reviravoltas, apesar de saborosas, chegam como avalanches sem pausa. Entre qualidades e pecados, o saldo final é positivo. Isso porque por trás da ação policial e o ritmo de thriller que dominam o roteiro, é o drama identitário e a relação de Laura com a maternidade que dá à série seu tom peculiar.
A série de fato começa quando, na metade do primeiro episódio, um atentado acontece no restaurante onde mãe e filha almoçam: um rapaz armado mata a ex-namorada à queima-roupa. A subtrama serve apenas para demonstrar que Laura tem habilidades à la Chuck Norris: quando Andy fica na mira do atirador, Laura se posiciona diante dele e reage de modo surpreendente, ganhando, depois, o título de heroína da cidade. A fama nacional repentina atrai desafetos do passado. Quando um homem invade a casa de Laura e é interceptado por Andy, a rotina de mãe e filha muda de vez — a moça descobre que a mãe mantém um depósito onde guarda um carro, muito dinheiro, uma arma e diversas identidades falsas. Neste momento, Andy e o espectador dão as mãos e ficam atados até o fim da série à pergunta: quem é de fato essa mulher? A resposta vem aos poucos, ora como um melodrama exagerado, ora em uma sacada esperta e satisfatória.
ATENÇÃO – Daqui em diante, o texto contém spoilers.
Para você que ajudou a engrossar a audiência da série, que chegou a 53 milhões de horas assistidas em menos de uma semana no ar, não é segredo que Laura não se chama Laura, mas Jane. Ela é cuidada pelo governo dentro do sistema de proteção à testemunha. Envolvida com um grupo terrorista na juventude, o qual destruiu sua família, a jovem aceita mudar toda sua vida e identidade para manter a filha a salvo.
Laura/Jane vive em liberdade protegida pelo FBI, mas não se sente de fato livre. Quando tem câncer, se desespera ao pensar que pode morrer, como ela diz, “na pele de outra pessoa”. O trato com a filha, que vai do áspero ao amoroso em segundos, carrega em si um dilema a parte: Andy é filha do homem que liderava o grupo terrorista e que alicia Jane e chega, mais tarde, a agredi-la brutalmente. Como amar a filha do seu agressor? E como odiar sua própria filha? As questões mais valiosas da trama quase passam batidas pelo roteiro, não fosse a atuação sóbria de Toni Collette, que, mais uma vez, prova ser um talento raro e sem vaidades em Hollywood.