Estupro, aborto e mais: o que esperar da primeira novela da Netflix
Com Pedaço de Mim, a plataforma enfim faz sua investida nos folhetins para streaming — e acerta em cheio num dramalhão antenado com o Brasil real
Casada com Tomás (Vladimir Brichta), um advogado bem-sucedido, Liana (Juliana Paes) não esconde: tudo o que deseja na vida é ser mãe. Para isso, a terapeuta ocupacional toma estimulantes de ovulação sem prescrição médica e faz sexo mecanicamente em dias férteis. Cansado da rotina obsessiva, Tomás se envolve com uma colega de seu grupo de ciclismo. Um dia, após mais uma relação sexual burocrática, Liana descobre a traição — e o casamento dos dois fica por um fio. Após ele sair de casa, a mocinha se dispõe a esquecer os problemas caindo na noitada com uma amiga, indo para a balada do nada bem-intencionado Oscar (Felipe Abib). Após ingerir bebidas e drogas cedidas por ele, Liana perde a consciência e, depois, descobre ter sido abusada sexualmente pelo dono de boate. Devastada, tenta apagar o ocorrido, até deparar com a notícia chocante de que está grávida de gêmeos. Detalhe bombástico: cada bebê é filho biológico de um pai diferente, Tomás e Oscar. A superfecundação heteropaternal de fato existe na vida real, ainda que raríssima — são vinte casos registrados no mundo até hoje. A premissa conduz Pedaço de Mim, primeira série de melodrama da Netflix, que aposta em um dramalhão para atrair o público afeito às novelas da Globo.
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Pelos quatro episódios iniciais (de um total de dezessete) a que VEJA teve acesso antecipado, o drama tem boas chances de atingir seu intento. O investimento da plataforma foi do elenco de ex-estrelas da emissora, como Juliana Paes, Vladimir Brichta e Palomma Duarte, até a autora da trama, Ângela Chaves, a mesma que assinou o último remake de Éramos Seis, em 2019. Com isso, a Netflix quer fazer o público se debulhar em lágrimas como nos folhetins. Mas, espertamente, deu um banho de loja no gênero. O maior diferencial é ser mais enxuta que uma novela interminável de 180 capítulos: não há tempo para as famosas “barrigas”, feitas para enrolar o espectador.
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Sorte ou radar apurado, a Netflix conseguiu reverter em seu favor até um dado que poderia jogar contra: seguindo a lógica das séries, Pedaço de Mim foi toda roteirizada e rodada há meses, o que a priva do expediente da Globo de efetuar ajustes com a novela no ar, ampliando a sintonia com o público. Mas a opção por uma narrativa adulta acabou sendo certeira: logo de cara, Liana questiona se seria possível abortar o feto fruto do estupro — direito das mulheres que mobilizou a opinião pública diante do projeto draconiano, em debate na Câmara dos Deputados, que equipara aborto a homicídio. “A gente nem devia estar debatendo isso, mas devemos fazer como questão de saúde pública, não religiosa”, disse Juliana Paes a VEJA. Pelo jeito, as novelas do streaming vieram para causar barulho.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900