De ‘A Escada’ a ‘Pacto Brutal’, o sucesso do true crime entra em nova fase
Forjado em documentários e podcasts, o filão explora as nuances da Justiça — indo além da busca por culpados
Dias antes do Natal de 2001, uma tragédia atingiu a pacata cidade de Durham, no estado americano da Carolina do Norte. A esposa do escritor Michael Peterson, Kathleen, foi encontrada morta na escada de sua residência após um pedido de socorro do marido. A polícia logo descartou a hipótese de acidente doméstico e classificou o caso como homicídio. Principal suspeito, Peterson foi condenado à prisão perpétua. A sentença seria revogada anos depois, mas a desconfiança sobre sua culpa não se dissipou. Essa história foi retratada na série documental Morte na Escadaria, em 2004, e ganhou neste ano uma exímia adaptação ficcionalizada em A Escada, da HBO Max, com Colin Firth na pele do romancista. O julgamento inconclusivo de Peterson virou exemplo de quanto o sistema judiciário americano pode ser ineficaz e frustrante.
Modus Operandi: Guia de true crime
Nas lacunas deixadas pela polícia ou pela Justiça em casos reais assim, floresceu um prolífico gênero de narrativa explorado por documentaristas, escritores e jornalistas que esmiúçam veredictos contestáveis e exploram os cantos obscuros da mente humana. O fenômeno ganhou um nome que virou garantia de sucesso: true crime. O termo em inglês engloba as tramas sobre assassinatos e outros delitos verídicos que ultrapassam os limites do noticiário mundo cão para ganhar polimento especial em podcasts, documentários e, agora, séries. Neste ano, a força da tendência se refletiu de forma inédita no Emmy. Dos onze títulos das categorias de minissérie da principal premiação da TV americana, sete são da linha true crime — entre eles A Escada, com indicações de ator para Firth e de atriz para Toni Collette, que faz a vítima.
Os crimes da vida real sempre alimentaram o imaginário popular e, por extensão, impuseram-se como matéria-prima para a ficção. As tramas do true crime, no entanto, acrescentam peculiaridades muito contemporâneas à receita. Mais que meras reconstituições, essas produções extraem seu apelo da tática de reexaminar as próprias investigações dos casos, pondo em xeque o trabalho da polícia, questionando as decisões da Justiça e as intenções das partes envolvidas. Bem ao espírito da era das redes sociais, elas deixam um gostinho de conspiração no ar. Ao fim do programa, o espectador sai com mais dúvidas que certezas sobre o crime.
American Crime Story: O Povo Contra O. J. Simpson
O filão tem como seu padrão-ouro a excelente American Crime Story, criação de Ryan Murphy que em 2016, na sua primeira temporada, não apenas retratou o julgamento de O.J. Simpson: com lucidez espantosa, expôs a hipocrisia e as pressões sociais que levaram à absolvição do ex-jogador de futebol americano acusado de matar a esposa. Na terceira temporada, American Crime Story: Impeachment, disponível no Star+, expõe a alta dose de machismo que temperou o escândalo das escapadelas do ex-presidente americano Bill Clinton com Monica Lewinsky na Casa Branca.
Ted Bundy: Um Estranho ao Meu Lado
Na linha de A Escada, a minissérie Landscapers, da HBO, segue Olivia Colman como Susan Edwards, ex-bibliotecária inglesa condenada à prisão juntamente com o marido por matar e esconder os corpos dos pais dela no quintal da casa da família por quinze anos. O casal assumiu a culpa pelo crime de ocultação de cadáver, mas não pelos homicídios. Em quatro episódios, a série mostra os abusos sofridos por Susan nas mãos dos pais, adicionando complexidade à teia de motivos do crime. Mais sinuosa é a história de The Girl from Plainville, exibida no Brasil pelo Starzplay, sobre uma adolescente que induziu o namorado ao suicídio por meio de mensagens de celular, em 2014. Ambos sofriam de depressão — o que faz a jovem ser vista como culpada e vítima a um só tempo.
No Brasil, um exemplar atípico fez o caminho inverso, tirando o véu de ficção que por trinta anos pairou sobre um crime real. A minissérie Pacto Brutal, da HBO Max, aborda o assassinato da atriz Daniella Perez, filha da autora Gloria Perez, pelo colega Guilherme de Pádua e a então esposa, Paula Thomaz, em 1992. Na época, o caso se mesclou à novela De Corpo e Alma, na qual ambos atuavam na Globo. Sem dar palco aos criminosos, Pacto Brutal devolve a narrativa à família da vítima. “Foi a primeira vez que pude falar de sentimentos. Antes, só tive de rebater versões fantasiosas e agressões à memória da Dani”, disse Gloria a VEJA. Em menos de um mês, a série se tornou o título mais visto da HBO Max nacional até hoje. “A repercussão me diz que valeu a pena o desgaste emocional de revisitar esse momento tão sofrido”, afirma Gloria. A verdade na tela é libertadora.
Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802
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