Como séries sobre mundo corporativo foram da comédia à distópica Ruptura
Protagonista da série, Adam Scott falou a VEJA sobre a tendência

Em meados de 2012, Dan Erickson era um aspirante a roteirista que passava boa parte do dia trabalhando no gerenciamento de uma fábrica de peças para portas em Los Angeles. Entediado com a rotina de planilhas e escritório, o rapaz de 28 anos desejava se desligar do trabalho e acordar magicamente depois do expediente. Criativo, Erickson transformou a ideia em um piloto que, anos depois, com a colaboração e direção do estrelado comediante Ben Stiller, sairia do papel como Ruptura, série da Apple TV+ que estreia sua segunda temporada na sexta-feira, 17. Lançada quase três anos após a antecessora, a nova leva de episódios aprofunda ainda mais a mescla inteligente e sombria de ambiente corporativo com ficção científica que inovou no retrato da labuta nas telas. “Sempre fui um grande fã de David Lynch em Twin Peaks. Amo essa vibe levemente surrealista e misteriosa, e queria combiná-la com a atmosfera das comédias clássicas no ambiente de trabalho”, explicou Erickson a VEJA, citando um filão com títulos de sucesso como The Office, Parks and Recreation e Party Down — as duas últimas com o protagonista de Ruptura, Adam Scott, no elenco. “É como uma comédia divertida no escritório, exceto pelo fato de que tudo pode desmoronar a qualquer momento, pois as pessoas não sabem quem são ou o que fazem”, define o intérprete do improvável herói Mark Scout (leia a entrevista).

Parte indissociável da vida de uma fatia generosa da população mundial, o tradicional escritório é cenário recorrente na cultura pop. Nas tramas cômicas que se passam entre computadores e papeladas, ou até mesmo em locais mais diversos como restaurantes, o ambiente de trabalho funciona quase como um personagem à parte, inspirando situações corriqueiras de fácil identificação com o público, como almoços corridos no expediente, intrigas entre colegas, abuso de superiores e, claro, piadas que nascem desse caldeirão fervente de hierarquias e convivência diária. No mundo cada vez mais automatizado e competitivo de hoje, as tramas trabalhistas também avançam para retratos menos risonhos da realidade: renovada para a quarta temporada, a aflitiva Industry, da HBO, acompanha um grupo de trabalhadores tentando sobreviver e triunfar em meio à competição implacável do mercado financeiro, que deixa todos na corda bamba do burnout.
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Maior expoente do filão, Ruptura eleva a ideia às últimas consequências ao inserir na receita elementos de ficção científica que dão à narrativa ares de distopia. Na história, funcionários de uma empresa chamada Lumon são submetidos a um processo complexo de fissão do cérebro que separa a mente em duas personalidades: uma delas existe apenas no trabalho, enquanto a outra ganha vida só fora do expediente. Inicialmente, as versões innie e outie, como são chamadas, não sabem da existência uma da outra, nem fazem ideia de que foram submetidas ao processo que gera duas rotinas paralelas para cada pessoa.

Na nova temporada, no entanto, muitos funcionários já se deram conta da situação degradante, e precisam decidir o que fazer a partir disso. Os caminhos são complexos, e testam os limites do ser humano. “É uma pergunta provocativa: você se desligaria por metade do dia para escapar de uma parte difícil ou desconfortável da sua vida?”, questiona Britt Lower, que vive a executiva Helly, lembrando que a cultura atual premia quem trabalha até a exaustão. “Vemos espelhos de nós mesmos em alguns dos personagens, e acho que isso é um grande atrativo da série”, complementa Tramell Tillman — cujo personagem, Milchick, cresce nos novos episódios.
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Para além da identificação com tantos trabalhadores reais — que não separam o cérebro em dois, mas enfrentam jornadas excruciantes e precisam abrir mão de dias de lazer e do convívio familiar para garantir o próprio sustento —, a trama coloca em pauta o poder das megacorporações, que podem pressionar e submeter funcionários a situações em que desligar a mente durante o horário de trabalho não parece uma má ideia. “O procedimento de ruptura pode ser visto como algo tentador para simplificar a vida, mas também pode ser usado contra você por aqueles que estão no poder”, divaga Erickson.

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Lançada em fevereiro de 2022, Ruptura foi idealizada antes da pandemia, mas a primeira temporada chegou num momento em que o trabalho presencial era retomado a passos lentos. Mesmo hoje, quando muitas empresas optaram por manter o home office ou modelos híbridos, a distância física do escritório não aplacou os conflitos ligados a ele — em alguns casos, eles foram até intensificados. “O equilíbrio entre vida pessoal e profissional foi rompido. Quando se trabalha de casa, o horário de expediente pode não ser respeitado, por exemplo. Não imaginávamos que haveria uma pandemia quando fizemos a série, mas ela deu à trama um novo contexto”, aponta Erickson. Por fim, o fantasma de inovações tecnológicas que já estão tendo (ou terão) alto impacto na vida dos trabalhadores de escritório, como a inteligência artificial, contribui para que as séries sobre esse universo troquem o clima de comédia de The Office pelos contornos sombrios de Ruptura ou Industry. Às vezes, o emprego dos sonhos vira um belo pesadelo.
“O escritório é familiar”
Protagonista de Ruptura, Adam Scott falou a VEJA sobre as tramas corporativas e o retorno da série.

Há muitas produções sobre o ambiente corporativo na TV. Como Ruptura se conecta com elas? O roteiro ganha um toque de leveza no momento em que você conhece essas pessoas no escritório. De certa forma, parece um pouco com The Office ou Parks and Recreation, com os funcionários em suas mesas cutucando uns aos outros. A diferença é que eles não têm ideia de quem são de fato.
Por que séries corporativas são tão populares? Creio que de certa forma o ambiente parece confortável e familiar para o público. No caso de Ruptura, tem também uma camada desconhecida, e toda a questão da ficção científica, que está à espreita em cada esquina.
Como é atuar como dois sujeitos que, na verdade, são o mesmo? Desde o começo, sabíamos que era importante que não fossem dois personagens diferentes. Em uma festa com desconhecidos, você não se comporta da mesma forma que ao lado de amigos. É mais ou menos a mesma ideia: temos partes distintas da mesma pessoa.
Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2025, edição nº 2926