Boate Kiss: série da Netflix escancara ao mundo 10 anos de impunidade
Novo true crime da plataforma, 'Todo Dia a Mesma Noite' abusa do drama e revisita tragédia que matou 242 pessoas em balada de Santa Maria (RS)
No dia 27 de janeiro de 2013, um incêndio na Boate Kiss em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, causou a morte de 242 pessoas queimadas, pisoteadas e intoxicadas com espuma tóxica. Naquela noite, uma festa do curso de Agronomia da Universidade Federal de Santa Maria era realizada no local, onde o vocalista da banda Gurizada Fandangueira acendeu um sinalizador de uso externo dentro do clube, atingindo a espuma do teto que era feita de um material inflamável. Além das fatalidades, 636 pessoas ficaram feridas e com sequelas até hoje. Na próxima sexta-feira, 27, o caso completa 10 anos não só da tragédia, como da impunidade. Dos 28 indiciados por envolvimento direto e indireto na incêndio – entre donos da boate, integrantes da banda, funcionários da prefeitura e até bombeiros –, apenas quatro pessoas foram levadas à julgamento, condenadas, porém, com uma manobra de advogados, conseguiram habeas corpus e estão soltas. Ou seja, nenhuma pessoa responsável pelas centenas de mortes está presa atualmente. Nesta quarta, 25, a Netflix lança a série dramática Todo Dia a Mesma Noite, baseada no livro-reportagem homônimo de Daniela Arbex, sobre a história que abalou o Brasil e que até hoje não trouxe justiça às vítimas e seus familiares.
Na onda do true crime, a ficção roteirizada por Gustavo Lipsztein e dirigida por Júlia Rezende para a Netflix busca resgatar a memória de tantas vidas interrompidas, enquanto torce para que o caso não caia no esquecimento. Em cinco episódios, as histórias de vítimas e suas famílias são simuladas para mostrar como aqueles jovens obviamente tinham sonhos, eram amados e só queriam se divertir na Kiss naquela noite. Para além da tragédia, o drama também ressalta, como no livro de Daniela, a chocante reviravolta da busca por justiça quando pais de vítimas fatais foram processados pelo Ministério Público por apenas cobrarem insistentemente, ao longo de anos, a punição dos responsáveis. Havia a suspeita de que políticos foram protegidos à época das investigações. Com a tocante atuação de artistas como Paulo Gorgulho, Debora Lamm, Bianca Byington e Raquel Karro na pele dos pais que perderam seus filhos, Todo Dia a Mesma Noite é visceral, fazendo com que qualquer espectador consiga se imaginar na situação angustiante do momento em que a notícia do incêndio irrompe a cidade de Santa Maria, passando pelo reconhecimento das centenas de corpos espalhados por hospitais e ginásios, à luta incansável por uma resposta do Estado sobre a barbaridade.
Na próxima sexta-feira, 27, também, o Globoplay lança a série documental Boate Kiss – A Tragédia de Santa Maria, produzida e apresentada pelo repórter Marcelo Canellas. Formado na Universidade Federal de Santa Maria, mesma instituição da maioria das vítimas, o jornalista cobriu o caso de perto ao longo da década e agora revisita o local do incêndio, sobreviventes e parentes das vítimas. Comovente como a série da Netflix, o documentário reconstrói a noite fatídica, utiliza imagens de arquivo da cobertura da época e atualiza entrevistas, sem deixar de lado o olhar jornalístico de lado e dando ênfase ao drama da injustiça brasileira sobre o caso.
Juntas, as duas obras reforçam um retrato de impunidade que ainda cicatriza a história do Brasil com um caso revoltante de negligência e corrupção, mas principalmente de luto. Com sorte e apelo, renasce a esperança de que justiça seja feita e que tais lástimas não se repitam. “Há expectativa de mudar a consciência coletiva da memória do Brasil, causando uma reflexão que possa modificar o futuro. É sobre o fim da cultura da impunidade e essa minissérie pode ter uma contribuição imensa porque sua função social é potencializar a voz desses pais e de nos fazer refletir sobre é os caminhos que nos fizeram chegar até aqui”, diz Daniela Arbex a VEJA.