A linguagem do esquecimento
Leio numa entrevista do filósofo canadense Daniel Heller-Roazen, especializado em filosofia da linguagem, estas palavras que conseguem soar ao mesmo tempo estranhamente óbvias e serenamente espantosas: “O aprendizado da linguagem só é possibilitado por meio de um ato de esquecimento”. Falando ao jornal “O Globo”, Heller-Roazen – cujo livro “Ecolalias: sobre o esquecimento das línguas” […]
Leio numa entrevista do filósofo canadense Daniel Heller-Roazen, especializado em filosofia da linguagem, estas palavras que conseguem soar ao mesmo tempo estranhamente óbvias e serenamente espantosas: “O aprendizado da linguagem só é possibilitado por meio de um ato de esquecimento”.
Falando ao jornal “O Globo”, Heller-Roazen – cujo livro “Ecolalias: sobre o esquecimento das línguas” está saindo no Brasil pela Editora Unicamp – recorre ao linguista russo Roman Jakobson para explicar sua ideia: “Ele [Jakobson] descreve uma redução no escopo das variações sonoras articuladas pela criança, que, de uma série aparentemente inesgotável de possibilidades, passam a se conformar progressivamente, durante o processo de aprendizado da fala, aos padrões de uma língua específica”.
Ah, é desse esquecimento que se trata, então? Com irresponsabilidade crônica de cronista, antes de cumprir a obrigação básica de ler o livro do canadense, penso que a explicação dele faz sentido, mas de alguma forma é decepcionante também. Porque o papel do esquecimento parece ir muito além da infinidade de portas que, na linguagem como na vida, toda pessoa vai fechando à medida que cresce. Sem uma cota necessária de silêncio, como intuiu Wittgenstein, não há linguagem, assim como sem pausa, escuro, não há música ou forma. Quem já se entediou mortalmente com um filme de Baz Luhrmann, com sua tentativa histérica de afogar todos os silêncios num transbordamento de signos, conhece bem esse limite.
Mas a coisa ainda parece ir mais longe. Recordo-me então – se é que tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, como diria Jorge Luis Borges – do conto Funes, o memorioso, em que o escritor argentino, o maior filósofo da linguagem que já militou na ficção, imagina um caipira aquinhoado com um dom sublime: uma memória que não deixa escapar nada, nenhum detalhe, por mais microscópico, de tudo o que lhe foi dado testemunhar na vida. Funes, conta Borges, “sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho”.
Decorre daí o fato genial de que Funes era uma besta, “incapaz de ideias gerais, platônicas. Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente)”. Como observa o escritor sul-africano J.M. Coetzee, admirador do mestre argentino, o memorioso personagem, por lhe ser vedada a bênção do esquecimento, do silêncio, “não consegue formar idéias gerais, e portanto – paradoxalmente, para alguém que é quase mente pura – não consegue pensar”.