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Rodrigo de Almeida

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Jornalista, cientista político e consultor de comunicação e política. Escreve sobre políticas públicas em áreas como educação, segurança pública, economia, direitos humanos e meio ambiente, entre outras
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Por que criar uma nova Comissão da Verdade

Os argumentos do advogado Beto Vasconcelos a favor de uma comissão para investigar e responsabilizar a gestão do governo anterior na pandemia

Por Rodrigo de Almeida
Atualizado em 17 mar 2023, 14h29 - Publicado em 17 mar 2023, 12h58

A Covid-19 parece assunto rumo ao esquecimento coletivo, mas o Brasil está num momento decisivo para a criação de uma Comissão Nacional da Verdade que apure os fatos e faça justiça à história de cada vida perdida nos últimos três anos para a pandemia. A defesa é do advogado Beto Vasconcelos, apontando a iniciativa em direção a um foco específico: o que chama de gestão irresponsável da saúde pública e da pandemia e a necessidade de responsabilização das autoridades que conduziam essa gestão.

Para Vasconcelos, especialistas e algumas organizações que apoiam a iniciativa, no país que teve um dos maiores índices de morte por Covid-19 no mundo até o revoltante genocídio dos povos Yanomami, deram-se ações “deliberadamente adotadas” pelas autoridades, algo que “exige do país o dever da verdade, da memória e da justiça”.

Verdade para revelar, memória para registrar, justiça para responsabilizar. Essa é a tríade que o advogado busca levar como debate ao governo federal, ao Congresso Nacional e à sociedade brasileira. E repete à coluna, com a autoridade de quem foi secretário de Assuntos Jurídicos da Presidência da República durante os dois primeiros mandatos do presidente Lula e secretário Nacional de Justiça do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, e é uma voz moderada que costuma transitar bem por campos liberais e conservadores.

O Brasil já teve uma Comissão Nacional na Verdade, entre 2012 e 2014. Instalada por Dilma, a comissão investigou as violações praticadas pelo Estado nos anos de ditadura militar, elencou 434 pessoas mortas ou desaparecidas durante a ditadura e apontou 377 agentes do Estado como responsáveis.

A responsabilização de agora se sustenta em números, atos e ausências. O Brasil teve três vezes mais mortes proporcionalmente do que a média mundial. Embora nomes da ciência torçam o nariz para projeções muito precisas, o fato é que diversos estudos mostram que milhares de vidas poderiam ter sido salvas se o país tivesse à época uma campanha máxima e um protocolo mínimo: do governo se esperava uma campanha intensa de prevenção e adoção de protocolos que já eram consensos na comunidade científica – em especial o isolamento social e o uso de máscaras.
Não fez nenhuma coisa nem outra e, ao contrário, como se sabe, Bolsonaro foi o maior porta-voz de negacionismos. Métodos e práticas que também ajudaram a escancarar nossa desigualdade.

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Vasconcelos cita alguns dados: cerca de 30 mil indígenas foram contaminados, em números de 2021 divulgados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib); entre 54 mil e 63 mil pessoas idosas foram salvas no primeiro semestre de 2021 devido ao início da vacinação, de acordo com o Observatório Covid-19 BR; e pessoas negras (55%) morreram mais do que brancas (38%), segundo o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, da PUC-Rio.

Essa última diferença levou muitas vozes a alertar para a desigualdade racial na saúde. Foi o caso de Maria Sylvia de Oliveira, advogada e diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, e uma das referências do debate de políticas voltadas para a população negra.

Nos primeiros meses da pandemia, Maria Sylvia declarou uma frase que seria citada em projetos de lei e decisões de tribunais em favor da obrigação do registro sobre a etnorraça de pessoas infectadas: “Moradias precárias, negação de acesso a direitos básicos como saneamento básico e saúde são fatores que fazem com que essa parcela da população sofra um impacto muito maior.”

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O impacto sobre povos indígenas estendeu a tragédia. Em 2021, a Apib protocolou comunicado no Tribunal Penal Internacional (TPI) para denunciar o governo Bolsonaro. Com o apoio da Comissão Arns, pediu investigação por crimes contra a humanidade e genocídio, enxergando ação deliberada para a destruição dos povos indígenas. O caso ainda está sob análise do TPI.

“Foi um projeto de genocídio dos povos indígenas, uma tomada de decisão em três níveis: desmonte das políticas indigenistas, não demarcação das terras indígenas e não inclusão dos povos indígenas entre os grupos que tinham vulnerabilidade”, resume à coluna o diretor executivo da Apip, Dinamam Tuxá. “Não só o governo se omitiu como promoveu ações que insuflaram invasões de terras indígenas que provocaram a contaminação”.
(Durante a recente crise dos Yanomami, o ex-presidente disse que nenhum governo dispensou tanta atenção e meios aos indígenas como o dele.)

Uma Comissão da Verdade é uma forma de não esquecer o que parece, insista-se, a caminho do esquecimento coletivo. Como escreveu esta semana o neurocientista Richard Sima, colunista do jornal Washington Post, há também um pano de fundo neural para reduzir o quanto lembramos dos anos de vida pandêmica.

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Professor da John Hopkins University, EUA, Sima defende a tese de que não queremos nos apegar às memórias pandêmicas. É a ciência do esquecimento, implacável até mesmo para uma pandemia que parecia inesquecível, “um evento histórico assustador”.

O melhor lenitivo contra sombras neurais são luzes políticas e históricas. Sobretudo num país que, como diz Beto Vasconcelos, é vocacionado para a ausência de memória e para uma tradição de versões históricas distorcidas e acordos cordiais – a cordialidade brasileira, mal compreendida, que vem de cordis, relativo a coração, e que transforma em coisa íntima, de amigos, o que deveria ser pública, impessoal, de todos.

Foi essa tradição que, em 1888, a escravidão chegou ao fim sem resolver como promover a inclusão de 700 mil escravos recém-libertos. Antes, uma independência foi consumada pelo filho do rei de Portugal. Depois, uma República instaurada sob a liderança de um marechal monarquista.
Restariam, no argumento de Beto Vasconcelos, o dever da verdade, da memória e da justiça para que essa tradição não se repita diante da pandemia: “Sem verdade, memória e justiça, não há como conhecermos, superarmos e evitarmos novos capítulos de desumanismo, autoritarismo, negacionismo e luto”.

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