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Roberto Pompeu de Toledo

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Ao império de “Q”

Teorias de conspiração encontram especial acolhida nas hostes da extrema direita

Por Roberto Pompeu de Toledo Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h23 - Publicado em 11 set 2020, 06h00

Elementar, cândido amigo. Surpreende-me que você não soubesse. Hillary Clinton comanda uma organização que pratica a pedofilia, faz tráfico de crianças e cumpre rituais demoníacos. A sede do grupo fica no porão de uma pizzaria em Washington, e vem bem ao caso que seja numa casa de pasto, pois em suas dependências o grupo se refestela em comilanças nas quais a atração é a carne das vítimas. O marido dela e Obama estão metidos na trama, claro, e adivinhe quem mais? George Soros, você disse? Sim, esse é fácil. De Oprah Winfrey e Tom Hanks também nem precisaria falar, mas tem mais. Não, você nunca adivinharia. O dalai-lama, meu caro, está nessa. E quer saber quem mais? O papa Francisco!

Elementar, inteligente leitor. Esta é uma das pérolas do gênero conhecido desde sempre, e impulsionado às alturas nestes tempos de Facebook, Twitter e similares, chamado “teoria de conspiração”. O “Pizzagate”, como é apelidado, é velho. Data da eleição americana de 2016 e podia até ser considerado divertido, se um homem, em dezembro daquele ano, não tivesse descarregado seu rifle contra o restaurante que abrigaria os pedófilos. Mais recentemente surgiu o QAnon — “Q” como identificador do misterioso informante do grupo, “Anon” como abreviação de “anônimo”. O QAnon herdou do Pizzagate a teoria do envolvimento de figurões do Partido Democrata, atores de Hollywood e altas autoridades mundiais numa rede de pedofilia, canibalismo e tráfico de crianças. Para desbaratar essa quadrilha, generais em altos postos articularam-se para pôr Donald Trump na Presidência. Não se perde por esperar. A um sinal de Trump, um dia uma operação de grande envergadura prenderá os culpados e exporá as provas de seus crimes.

Teorias de conspiração encontram especial acolhida nas hostes da extrema direita. Hitler invocou os falsos Protocolos de Sião para denunciar uma cabala judaica pelo controle do mundo. A confluência, nos Estados Unidos, de pandemia, protestos raciais e eleições foi para o QAnon o que se chama de sopa no mel. Sob o guarda-chuva da organização, sem prejuízo da teoria dos pedófilos, surgiram subteorias a envolver vacina, cloroquina, Black Lives Matter e incontáveis outros temas. Segundo Kevin Roose, colunista de tecnologia do The New York Times, seus adeptos, espalhados pelo Facebook, Twitter e similares, se contariam em centenas de milhares. A última proeza do movimento é que, do submundo da internet, avança para a política real. Uma sua entusiasta, Marjorie Greene, ganhou a primária num distrito da Geórgia, e disputará uma vaga na Câmara dos Representantes. “Ela será uma futura estrela do Partido Republicano”, festejou Trump.

“Nas urnas americanas, a sorte do Brasil, mais que de outras vezes, estará em jogo”

“Q” é descrito como uma pessoa dos altos escalões de Washington. Suas mensagens pela internet vêm em linguagem cifrada, e os grupos de apoiadores empenham-se em decifrá-las. Os grupos também atentam aos sinais de Trump. Num dia em que ele falou em “calma que precede a tempestade”, concluíram que o ataque aos pedófilos era iminente. Visto de certo ângulo o QAnon é um jogo de internet, a envolver uma multidão de praticantes. Visto de outro, é “o berço de uma nova religião, como escreveu a revista The Atlantic. Em nenhum caso é inocente; o FBI vê nele uma ameaça de terrorismo doméstico. Trump, entre o cinismo e a esperteza, tenta conduzir a água para o seu moinho. Perguntado sobre o movimento, respondeu: “Ouvi dizer que são pessoas que amam nosso país”. Questionado se endossava a tese da rede de pedófilos, saiu-se com: “Se eu puder ajudar a salvar o mundo de problemas, estou disposto a isso”. O presidente apresenta-se ao duelo eleitoral armado com um robusto arsenal de mentiras, mistificações, trapaças e venenos.

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Falta dizer que a maluquice — elementar, perspicaz leitora — já chegou ao Brasil. Em manifestação bolsonarista do dia 21 de junho em Brasília, segundo lembrou reportagem recente do jornal O Estado de S. Paulo, viam-se de um lado cartazes com a letra “Q” e de outro a advertência “Pizzagate é real”. Uma adaptação do original americano espalhou nas redes denúncias de envolvimento de ministros do STF em orgias patrocinadas pelo médium João de Deus. Que lunáticos estão no poder, apoiados por lunáticos, no Brasil como nos EUA, não é novidade. Podem divertir, mas são perigosos, e mais ficarão, aqui e lá, se Trump vencer a eleição. Nas urnas americanas, em novembro, a sorte do Brasil, mais que de outras vezes, também estará em jogo.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704

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