Faz mais de um ano que Jair Bolsonaro está fora do poder. Todos sabem o que ele nos deu de mau; talvez seja hora de examinar o que ele nos deu de bom.
O governo Bolsonaro teve algumas conquistas relevantes, como a reforma da Previdência, a autonomia do Banco Central, a lei de Liberdade Econômica, o Novo Marco Legal do Saneamento e algumas privatizações. Mas essas realizações pouco representam diante do desastre que foi sua gestão — o serviço que o ex-presidente nos prestou que é digno de nota foi nos mostrar quem somos nós, como país e como cidadãos. E ele mostrou muito.
Ao contrário do que dizem, nossas instituições não “são fortes”. Durante quatro anos, os ministérios operaram como estafetas para o presidente. O Congresso foi incapaz de tirá-lo do poder e a PGR recusou-se a denunciá-lo (falhas na legislação dão ao presidente da Câmara e ao PGR o poder de, sozinhos, impedir, respectivamente, impeachment e denúncia). Grandes parcelas das forças de segurança se deixaram cooptar. Tantas vezes disfuncionais, o STF e o TSE foram as únicas instituições capazes de defender a democracia sem titubear.
Nossas Forças Armadas não mudaram nos últimos quarenta anos, são as mesmas de sempre. Ainda que não tenham embarcado de corpo e alma no golpe, oficiais-generais se mostraram hostis à democracia incontáveis vezes. Suas declarações e atitudes antidemocráticas, sua leniência com oficiais subalternos golpistas (mesmo hoje, são frequentes os relatos de que os generais trabalham para garantir sua impunidade) e seu acobertamento dos acampamentos estão na raiz do 8 de janeiro. As FFAA só vão mudar com alterações profundas nos currículos das escolas militares.
“O serviço que o ex-presidente nos prestou que é digno de nota foi nos mostrar quem somos nós”
Bolsonaro nos mostrou que existe uma enorme quantidade de brasileiros profundamente insatisfeitos com o Estado que temos — que, inchado e caro, entrega serviços de baixa qualidade, protege o funcionalismo e prejudica empresas e cidadãos — e com um establishment frequentemente corrupto, quase sempre alheio e desinteressado das dificuldades cotidianas da população. A parcela efetivamente fascista é reduzidíssima, mas ela existe e tem enorme capacidade de mobilização e comunicação.
Grande parte de nossa população — em todas as faixas de renda e nível de educação — continua capaz de apoiar um projeto de poder altamente preconceituoso contra negros, mulheres, homossexuais e indígenas: o peso de nossa herança patriarcal e escravocrata é bem maior do que se imaginava.
Particularmente chocante e doloroso é o vasto apoio a Bolsonaro nas classes mais ricas e instruídas. É assustador que pessoas viajadas, supostamente cultas e educadas, que se imaginam comparáveis às elites das nações desenvolvidas, possam defender alguém que se opõe frontalmente às liberdades democráticas, aos pobres, às minorias. Fica claro por que, depois de 134 anos de República, o Brasil não tem um sistema público de educação que preste, metade da população não tem saneamento e tanta gente vive em favelas.
Bolsonaro pôs um espelho diante de nossa cara. Resta saber se continuaremos a fazer cara de que não temos nada com isso.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2024, edição nº 2875