Os fatos obrigam Chico Buarque a se desculpar. Mas ele continua errado, na gramática e no mérito
É um vexame atrás do outro, sem fim. Chico Buarque, chefe do DCB (Departamento de Censura a Biografias), do Ministério da Esquerda Chique e Endinheirada, enviou uma carta ao jornal O Globo em que se desculpa com Paulo Cesar Araújo, o biógrafo de Roberto Carlos cujo livro foi censurado. Mas o fez à sua maneira, […]
É um vexame atrás do outro, sem fim. Chico Buarque, chefe do DCB (Departamento de Censura a Biografias), do Ministério da Esquerda Chique e Endinheirada, enviou uma carta ao jornal O Globo em que se desculpa com Paulo Cesar Araújo, o biógrafo de Roberto Carlos cujo livro foi censurado. Mas o fez à sua maneira, com a arrogância costumeira. Para lembrar: em artigo publicado pelo jornal, o sambista afirmou que jamais havia conversado com Araújo, embora seu nome constasse da lista de entrevistados pelo autor de “Roberto Carlos em Detalhes”. Escreveu com todas as letras: “Lamento pelo autor, que diz ter empenhado 15 anos de sua vida em pesquisas e entrevistas com não sei quantas pessoas, inclusive eu. Só que ele nunca me entrevistou”.
A sorte é que Araújo é um profissional prudente. Guardara fotos do encontro. Mais do que fotos: tinha o vídeo, que tornou público. Sim, havia entrevistado Chico, e ambos falaram sobre Roberto Carlos, a Jovem Guarda etc. Não tivesse a prova, Araújo, a esta altura, estaria lascado. Afinal, na ordem das coisas, no mundo empíreo das estrelas, quem é a de maior grandeza? Quem, no Brasil, pode discorrer com propriedade sobre qualquer assunto, a começar de política externa? Quem, no Brasil, tem licença para defender uma ditadura que prende pessoas por crime de opinião? Quem é o dono da palavra e da verdade? Se Araújo não tivesse documentado o encontro, sua credibilidade teria ido para o ralo. Passaria para a história como mentiroso.
O pedido de desculpas
Chico se desculpa nos termos que seguem. Sou obrigado a constatar mais uma vez: como é ruim a prosa do nosso mais laureado escritor! Essa gente é assim arrogante porque vive numa bolha, em que a puxação de saco alimenta a autocomplacência. E tudo por quê? Ah, porque eles “pensam direito”, porque gostam dos oprimidos… Vamos ao texto. Comento em seguida.
“Eu não me lembrava de ter dado entrevista alguma a Paulo Cesar de Araújo, biógrafo de Roberto Carlos. Agora fico sabendo que sim, dei-lhe uma entrevista em 1992. Pelo que ele diz, foi uma entrevista de quatro horas onde falamos sobre censura, interrogatórios, diversas fases e canções da minha carreira. Ainda segundo ele, uma das suas perguntas foi sobre a minha relação com Roberto Carlos nos anos 60. No meio de uma entrevista de quatro horas, vinte anos atrás, uma pergunta sobre Roberto Carlos talvez fosse pouco para me lembrar que contribuí para sua biografia. De qualquer modo, errei e por isto lhe peço desculpas.
Quanto à matéria da ‘Última Hora’, mantenho o que disse. Eu não falaria com a ‘Última Hora’ de 1970, que era um jornal policial, supostamente ligado a esquadrões da morte. Eu não daria entrevista a um jornal desses, muito menos para criticar a postura política de Caetano e Gil, que estavam no exílio. Mas o biógrafo não hesitou em reproduzi-la em seu livro, sem se dar o trabalho de conferi-la comigo. Só se interessou em me ouvir a fim de divulgar o lançamento do seu livro. Não, Paulo Cesar de Araújo, eu não falava com repórteres da ‘Última Hora’ em 1970. Para sua informação, a entrevista que dei ao Mario Prata em 1974 foi para a ‘Última Hora’ de Samuel Wainer, então diretor de redação, que evidentemente nada tinha a ver com a ‘Última Hora’ de 1970, que você tem como fonte”.
Comento
Começo pelo fim. Chico Buarque tem todo o direito de criticar a fonte em que o biógrafo colheu esta ou aquela informações. Entre outras coisas, ele tem a liberdade de fazer o que faz agora: desqualificá-la, dizer que está tudo errado etc. Mas isso é o bastante para justificar a censura prévia? A um biógrafo — como a jornalistas, escritores e compositores —, é facultado errar. Se o erro for dolo, que se faça a devida reparação legal.
E agora vou ao que considero mais importante, já que Chico Buarque é, dados os prêmios que recebeu, nosso prosador mais importante, né? Não sabe escrever. Não sabe, não! É por isso que seus “romances” se caracterizam pela chamada “prosa poética”, que, com raras e gloriosas exceções, costuma ser apenas uma soma de ilogismos e desconexões e cascatas metafóricas aparentemente profundas. Vamos ver.
“Eu não me lembrava de ter dado entrevista alguma a Paulo Cesar de Araújo, biógrafo de Roberto Carlos (…)
Sempre que me deparo com o uso de “algum” em lugar de “nenhum”, fico atento. Pode ser que estejamos diante de um novo Castilho da língua portuguesa, não é? Estou entre aqueles que consideram esse emprego uma licença. Evidentemente, o que remete à melhor língua portuguesa é “Eu não me lembrava de ter dado entrevista NENHUMA”. Para não entrar em minudências, vou para o exemplo:
— Quantos livros de gramática você já leu, Chiquinho?
— Não li algum!
— Hein?
— Não li nenhum!
— Ah, bom…
Admito que a língua culta já assimilou o recurso, empregado antes por gente douta. Ocorre, meus caros, que uma licença pode ser usada por escolha ou por ignorância. Eu poderia, no caso de Chico, condescender com a primeira hipótese não cometesse ele uma batatada ginasiana, um vício detestável de linguagem, muito difícil de corrigir, como sabem os professores de redação. Vejam:
“Pelo que ele diz, foi uma entrevista de quatro horas onde falamos sobre censura, interrogatórios, diversas fases e canções da minha carreira”.
Onde falamos???
O uso do advérbio “onde” como se pronome relativo fosse é coisa de gente que, definitivamente, não domina a inculta & bela, ainda que possa versejar. O correto, sem alternativas ou escolhas nesse caso, é: “Pelo que ele diz, foi uma entrevista de quatro horas em que (na qual) falamos sobre censura, interrogatórios, diversas fases e canções da minha carreira.
Não se pode empregar o “onde” numa oração subordinada? Sim. Desde que se trate da chamada oração subordinada adverbial locativa — ausente, de forma injustificada, da Nomenclatura Gramatical Brasileira. Um exemplo que não deve ser seguido por ninguém? Lá vai:
“Escrevo melhor onde é permitido fumar”
Notem que, nesse caso, o “onde” não pode ser substituído por “em que”.
Vá lá que se possa, no uso coloquial, empregar o “onde” com valor de pronome relativo. Vamos a um exemplo:
“Este é um país onde cantores querem se comportar como censores”.
É uma construção a ser evitada, leitor amigo. Como a intenção do emissor é construir uma oração subordinada adjetiva restritiva, faz-se o certo, com a mesma economia de recursos, assim:
“Este é um país em que cantores querem se comportar como censores”
E por que é assim? Porque o fito da mensagem não se volta para a circunstância de “lugar”; o que se quer é especificar é o tipo de país. Admito, no entanto, que, nesse caso, a contaminação da oração subordinada adjetiva restritiva pela subordinada locativa é compreensível. Mas voltemos ao texto de Chico Buarque:
“Pelo que ele diz, foi uma entrevista de quatro horas onde falamos sobre censura, interrogatórios (…)”
Entrevista, agora, é uma circunstância de lugar?
E deixo de barato o “por isto” em lugar de “por isso”, emprego também obrigatório porque ele se refere a algo já enunciado e não por enunciar. Como o trabalho para escrever uma coisa ou outra é o mesmo, faz o certo quem sabe.
Se Chico fosse só alguém que soltasse trinados por aí e um candidato a censor, deixaria pra lá o que a muitos pode parecer mera pegação no pé. Mas já que ele é o mais premiado prosador brasileiro, considero uma obrigação verificar a qualidade de sua prosa.
Pronto, Reinaldo, estragou tudo!
“Pô, Reinaldo, você vinha tão bem combatendo a censura… Até eu que detesto o que você escreve estava concordando… Precisava atacar também o Chico escritor? Já não estou mais com você!”
Pois é. O meu mundo é aquele em que a divergência não assusta. Não escrevo para que concordem comigo ou para que discordem de mim. Escrevo só o que acho que deve ser escrito. Num país viciado no falso consenso, pretendo exercer o verdadeiro dissenso. Até as 16h11, este blog tinha sido acessado 190.048 vezes. Parece que há muita gente interessada em chamar as coisas pelo nome que elas têm.