LITERATURA – O vício da palavra exata em “O Vício do Amor”
De vez em quando, volto àquele que já foi o meu ofício: escrever sobre literatura. Li “O Vício do Amor”, de Mario Sabino, antes ainda de o romance chegar às livrarias. Depois disso, já nos falamos dezenas de vezes, conversamos sobre isso e aquilo, também sobre as resenhas que saíram a respeito, todas muito favoráveis, […]
De vez em quando, volto àquele que já foi o meu ofício: escrever sobre literatura. Li “O Vício do Amor”, de Mario Sabino, antes ainda de o romance chegar às livrarias. Depois disso, já nos falamos dezenas de vezes, conversamos sobre isso e aquilo, também sobre as resenhas que saíram a respeito, todas muito favoráveis, e eu ainda não lhe disse o que achei. Até agora ao menos. “Você escreveu o seu melhor livro, Mario!” No estilo provocador deste seu amigo, lá vai: há muito não se ouvia na literatura a voz de um narrador masculino, com tudo o que pode haver de incômodo nisso.
Coitados dos homens! Antes que os escritores tentassem compreendê-los como “gênero”, na era dos debates sobre as identidades, chegou a hora de destruí-los, de decretar a morte do macho, de reduzi-lo a uma metonímia de abusado desprezo: “Sabe o que você faz com esse troço aí?” Bem, melhor não dizer. Mais malhado do que o “macho”, só mesmo o capitalismo. Ambos passaram a ser vistos como expressões de uma crise permanente, à beira da extinção. Tanto um como outro, vocês sabem, parecem retardar a nova aurora. Qual aurora? Sei lá eu! Se eu acreditasse nisso, estaria decretando o fim do capitalismo e a morte do macho…
A primeira fase do Romantismo, no século 19, ainda chegou a se interessar ligeiramente pelo herói destemido dos bons tempos da poesia épica, mas já havia nele algo de feminil, sofrido, solitário, ensimesmado, que foi dar nos chiliques de Werther, aquele que sentiu toda a dor de existir por causa de um braço de mulher. O nosso Peri já era meio suspeito… A testosterona restara inútil lá nos versos das guerras de conquista. A literatura, mesmo feita por homens, preferiu investigar os desvãos da alma feminina com muito mais agudeza e relevos. Em Proust, Swann se apaixona até pela macieira da casa de Odette, a periguete. Homens, se vistos de perto, ou são brutos e sozinhos contra Deus, como em Dostoievski, ou patetas que mais incomodam do que enternecem, como o Julien Sorel, de “O Vermelho e O Negro”, de Stendhal. Então está combinado: homens não têm alma nem vida interior. Quem é a Madame Bovary de calças?
Em “O Vício do Amor”, Sabino cria um narrador indubitavelmente masculino. O seu jeito de ir à guerra é não condescender com nada, não acreditar em ninguém, não ceder nunca. Se o homem é, afinal, essa criatura triste de Deus, só lhe resta dizer tudo, sem receio de parecer ou de ser abjeto. Quem é esse narrador? É Mario Sabino? Bem, esse é um de seus nomes. Ele também se identifica como Marco Levi e Ranuccio Tomassini. Sabe-se que foi jornalista, abandonado pelo pai na infância e criado por uma mãe que negociava favores sexuais com um vendedor de enciclopédias. Um evento da fortuna, a herança deixada por aquele pai ausente, permite-lhe, então, viver como um flâneur na Roma de seus antepassados sem precisar se preocupar com o pagamento das contas.
Há pouco, lia que a Itália tem de rolar uma dívida, de curto prazo, de estratosféricos 200 bilhões de euros! “Pra que tanta civilização?”, pergunta o meu coração, assim como faz, às vezes, o de Levi-Ranuccio-Sabino… Talvez ele dissesse que a sua Roma — que já foi “A Cidade”, de onde se falava para “O Mundo” — reflete um ideal que ficou para trás. Perdemos! A vida é feita de sujeições, de pusilanimidades. Os interesses menores movem a máquina da vida, e todos os que ensaiaram uma alternativa trilharam o caminho moralmente degenerado da violência. Resta o quê? Se o narrador fosse um crente ou um idealista, talvez ensaiasse uma resposta: “Deus”, o “espírito humano”, sei lá eu. Mas não é! Restam, como destaca João Pereira Coutinho no prefácio de “O Vício do Amor”, as palavras.
E Sabino — o autor — lida com elas como poucos. E, nesse caso, refiro-me tanto ao jornalista como ao escritor. “O Vício do Amor” é um romance de encontros e desastres amorosos de pessoas sempre em alta voltagem existencial ou intelectual, que ousam, e este me parece o aspecto mais incomodamente encantador do livro, relatar o que fazem enquanto fazem — a personagem Isabel, vocês verão, é a mortificante exceção. Ou nem tanto… O narrador pode não acreditar em nada, mas certamente acredita na palavra, ainda que seja no seu poder destruidor. E nenhuma situação é tão adequada ao exercício da loquacidade que seduz — e mata a esperança — como ir para a cama com a analista, como faz o narrador, que vive uma intensa relação com Lorenza, à qual não faltam atos de baixeza. A psicanálise — discurso que Sabino domina com profundidade e destreza — é uma espécie de olho oculto do livro. Pauta e explica certas tensões dramáticas. Estou entre aqueles que acreditam que as pessoas só vão parar num divã para lidar com as questões narcísicas. Transar com a (o) analista está no rol dos anátemas, é a linha que não se cruza, é o passo que jamais se dá; é, em suma, o último mergulho de narciso. E o nosso narrador fez isso. O resultado, vocês verão, não é dos melhores.
O narrador tem em Saulo, um ex-candidato a amigo, um curioso antípoda. Da admiração inicial, nasce a hostilidade. Eram, em muitos aspectos, parceiros no cinismo e na descrença de que uma essência humana nos proteja da vileza. Ocorre que Saulo é o tipo que entende a cultura como ilustração, que usa seu saber para bordar as irrelevâncias da vida com tiradas enciclopédicas. Também era um oportunista, que tenta, de algum modo, roubar a vida do nosso narrador. Acaba levando um murro na cara e um chute nas costelas. Era a descrença genuína socando a cara do diletantismo.
O tipo execrável, no entanto, responde por bons momentos do livro. A exemplo do narrador, de Lorenza e de Renata — sim, há uma “Renascida” —, Saulo se torna, às vezes, uma espécie de porta-voz de Sabino, o autor — não necessariamente de suas opiniões, mas de sua vasta cultura. “O Vício do Amor” também é um romance de idéias, gênero não muito praticado no Brasil. Como em certo cinema nacional, nossos autores parecem achar pouco natural que uma personagem cite Schopenhauer na quarta página, mas não vêem nada demais que diga uma penca de palavrões ou escarre na pia da cozinha antes da página três. Os debates que remetem à alta cultura soam naturais e fluentes no livro. Huuummm… Talvez cobrem um tantinho de inteligência, quem sabe até alguma pesquisa. Mas já não estamos com os saco cheio de um mundo que não costuma cobrar nem uma coisa nem outra?
Sabino é ainda autor do romance “O dia em que matei meu pai”, publicado em 10 países, além do Brasil, e dos livros de contos “O antinarciso” e “A boca da verdade”, que resenhei aqui. É redator-chefe da VEJA, mas está de saída. Decidiu tomar outro rumo profissional. Dado o seu reconhecido talento, estamos certos — especialmente os que privamos de sua amizade e de seu companheirismo — de que não será menos brilhante na nova função.
Leiam “O Vício do Amor”. Já se disse por aí que homens e mulheres perderam, respectivamente, a fêmea e o macho naturais de sua espécie e vão se virando como podem. Num dado momento, Renata — e o título do livro está com ela — parecia se afigurar o encontro improvável, o reencontro ancestral. Mas ela não sabia o que fazer de seu amor pela humanidade, este, sim, um vício que pode ser muito perigoso.
Viciem-se na palavra exata. É muito bom!
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