Há tempos Laura Capriglione não despertava a minha atenção, mas aconteceu de novo, com o caso da filha que “dopa pai”…
Um texto na Folha, oriundo do jornal “Agora”, assinado por minha musa, Laura Capriglione (e mais três pessoas), despertou-me a atenção. Na primeira página: “Filha dopa pai para tentar internação compulsória em SP”. O autor do título conseguiu superar em qualidade boa parte dos poemas concretos: “Filha dopa pai/ Filha do papai…”. Terá sido intencional? Na […]
Um texto na Folha, oriundo do jornal “Agora”, assinado por minha musa, Laura Capriglione (e mais três pessoas), despertou-me a atenção. Na primeira página: “Filha dopa pai para tentar internação compulsória em SP”. O autor do título conseguiu superar em qualidade boa parte dos poemas concretos: “Filha dopa pai/ Filha do papai…”. Terá sido intencional? Na página interna, isto: “Por internação à força, filha leva pai dopado para centro de saúde”.
Teve início ontem — escrevi dois textos a respeito — o programa do governo de São Paulo para a internação involuntária de dependentes químicos. Estão envolvidos na operação, permitida por lei, médicos, juízes, Ministério Público e OAB. Alguns são contra — acho que estão estupidamente errados; outros, a exemplo deste escriba, a favor. Uma ideia certa ou errada no mérito pode ter bons e maus argumentos. É possível ser honesto no equívoco. A boa-fé não é monopólio das pessoas que fazem as melhores escolhas.
Decidi ler a reportagem da Folha, que tem todo o direito de se opor à medida — e quanto mais clara for num editorial a respeito, por exemplo, melhor. O que se faz nessa reportagem, no entanto, não me parece intelectualmente decente.
O texto, é verdade, se encarregou de informar as circunstâncias em que “a filha dopa pai”. Leiam (em vermelho):
A mulher, que recolheu o pai da rua dizendo que o levaria ao médico, precisou colocar um calmante num copo de suco para conseguir levá-lo. “Ele já usa crack há dez anos, já foi internado voluntariamente duas vezes, mas quis sair. Não quero que ele morra. Não saio daqui sem a internação”, dizia a filha.
A filha que “dopa pai” era mesmo a “filha do papai”. Praticou, na verdade, um gesto de amor, a um custo psicológico que não deve ter sido pequeno — e entendo que as pessoas, ATÉ AS QUE NÃO CONSOMEM DROGAS!!! — merecem um pouco mais de respeito.
Vocês já viram em que estado ficam os viciados em crack quando estão em surto? Podem ser, como sabe todo médico, extremamente violentos. Pais e mães certamente sofrem terrivelmente ao buscar um filho na rua para tentar interná-lo… Mas fico cá pensando no desamparo psíquico em que cai uma pessoa, por mais madura que seja, quando é obrigada a resgatar o pai da sarjeta.
Essa pobre mulher nem estava tentando se livrar de um problema doméstico. Seu pai já estava perdido para o mundo dos vivos. A morte precoce era seu destino fatal. E ela recorreu a uma estratégia — um calmante — para conseguir levá-lo ao médico.
Laura Capriglione e os demais viram na espetacularização do drama privado um “gancho interessante” e crítico para abordar o programa, que não conta com a simpatia dos “progressistas”, ainda que ele seja, até agora, a única alternativa razoável para os viciados. Mais: está cercado de todos os cuidados, vigiado por várias instituições, para que se evitem eventuais abusos.
Não, dona Laura, a filha não “dopou” o pai! Respeite essa mulher corajosa! Ela estava procurando, e imagino com que dor, tentando salvá-lo de um fim certamente trágico se nada for feito. Não vou ficar aqui arbitrando sobre intenções porque não sou juiz da consciência alheia. Pouco me importa o que Laura e os outros pretenderam. Uma coisa é certa: o texto é moralmente doloso.
O fim da reportagem dá o que pensar (em vermelho):
Entre os que fugiram do tratamento estava um jovem. De passagem pela rua Prates, onde funciona o Cratod, ele parou após ver os militantes da luta antimanicomial.
Enviado para o serviço de “orientação”, em uma hora, seria atendido. “Não vou aguentar”, gritava.
Acabou aproveitando a comoção que tomou conta dos repórteres, recolheu R$ 6,50 (que disse serem para comprar um prato feito) e saiu.
Encerro
Não entendi se o dinheiro foi dado pelos “repórteres comovidos” ou por outros. Seja como for, já houve um tempo em que jornalistas eram pagos para pensar e relatar o que viam. Apenas. Digamos, no entanto, que, nos dias de hoje, também lhes seja permitido entrar em “comoção”. Acho que é o caso de seus respectivos chefes lhes recomendarem que se comovam também com os que não consomem drogas…
A Folha deve desculpas àquela mulher.