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A solitária multidão de um só Pessoa

Na VEJA desta semana, escrevo uma resenha do livro “Fernando Pessoa – Uma Quase Autobiografia”, escrito pelo brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho e publicado pela Editora Record. Segue um trecho no texto. A íntegra vai na revista. O poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), que recusara uma cátedra de literatura inglesa em Coimbra, ganhava a vida […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 12h14 - Publicado em 18 abr 2011, 14h01

Na VEJA desta semana, escrevo uma resenha do livro “Fernando Pessoa – Uma Quase Autobiografia”, escrito pelo brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho e publicado pela Editora Record. Segue um trecho no texto. A íntegra vai na revista.

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O poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), que recusara uma cátedra de literatura inglesa em Coimbra, ganhava a vida traduzindo correspondência comercial para o inglês e o francês. Em 1928, a empresa em que trabalhava havia importado coca-cola e lhe encomendou o slogan de lançamento da bebida. Nos EUA, vendia-se “a pausa que refresca”. Ele tentou o que lhe pareceu menos frívolo: “Primeiro estranha-se; depois entranha-se”. Um dos maiores poetas da história ajudou a produzir um desastre comercial. A ditadura de Antônio Salazar, com a qual ele flertara, desancando-a depois, proibiu a venda. “Entranha-se?” Então é alucinógeno! A coca-cola só voltou ao país em 1977! Pessoa criou ainda um texto de inspiração metafísica para vender tinta para automóveis. Fiasco. “A vida prática sempre me pareceu o menos cômodo dos suicídios”, escreveu.

Essa é uma das histórias de “Fernando Pessoa – Uma Quase Autobiografia”, do escritor pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho. Trata-se de um calhamaço de 734 páginas, de leitura agradável e fluente. É a mais completa e detalhada reconstituição que jamais se fez da vida do autor, talvez o poeta mais citado da língua portuguesa por aquilo que quase escreveu — “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena” — e por aquilo que não escreveu: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. No primeiro caso, é “se”, não “quando”. A segunda fala não é sua, mas do general romano Pompeu. Pessoa apenas a citou para criar a sua própria divisa: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar.”

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Grandeza e banalidade, ambições desmedidas e frustrações mortificantes, paixões visionárias e dificuldades para pagar as contas de uma existência modestíssima, tudo está relatado com rigor e obsessão documental, em especial o romance de muitos beijos e cartas, mas nenhum sexo, com Ophelia Queiroz. A moça teve de disputá-lo com os heterônimos, as personalidades poéticas em que escrevia. Incluindo os relativamente conhecidos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares e o próprio Pessoa, eram 127. Estudioso da astrologia, do ocultismo e do espiritismo, chegou a atribuir os seus escritos à mediunidade, embora considerasse que “o misticismo é apenas a forma mais complexa de ser efeminado e decadente”.

A solitária multidão de um só Pessoa criou um marco insuperado, talvez insuperável, na literatura de língua portuguesa ou, mais amplamente, na literatura moderna. No ensaio “O que é um clássico?”, o poeta e crítico inglês T.S. Eliot afirma que o latino Virgílio (70 a.C-19 a.C.) era o único a merecer essa classificação porque foi a expressão da maturidade de uma cultura. Não basta ter talento; é preciso representar a consolidação de um anseio coletivo. O clássico não é só um gênio no uso da língua, mas encarna o próprio gênio da língua. Nesse particular ao menos, Pessoa foi o Virgílio Português — o heterônimo Álvaro de Campos, a propósito, nasceu no dia 15 de outubro, data do aniversário do poeta latino. Experimentaram, no entanto, uma diferença de perspectiva. O autor de Eneida produziu para um império triunfante; Pessoa vive o esplendor da decadência portuguesa — e isso, curiosamente, o torna verdadeiramente grande:
“Ah, quanto mais ao povo a alma falta/
Mais a minha alma atlântica se exalta (…)”

(…)

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