Minha vida é cercada de livros — os que li, os que escrevi, os que ainda quero escrever. Acho mágica a relação que nasce no instante em que o leitor abre a primeira página e mergulha em personagens, dramas, mundos novos. Aos poucos, os dois — leitor e escritor — constroem uma intimidade rara, silenciosa, quase secreta, de ritmo próprio. Não é à toa que costumam dizer que o livro é melhor do que o filme. Afinal, ler um livro pressupõe cumplicidade, o leitor cria junto, imagina o rosto da personagem, a entonação da fala, o calor do beijo.
Só presenteio meus amigos com livros. Livros nos preparam para a vida, nos levam a lugares desconhecidos, nos oferecem bagagem emocional para lidar com uma gama de situações. Graças a eles, conhecemos o perigo corrosivo da dúvida em uma traição, ou da culpa de um crime banal, visitamos dores inéditas, conquistamos batalhas que não são nossas, vivemos aventuras épicas, intrigas internacionais, arrebatamentos amorosos e desejos inconfessáveis. Brincam até que livro deveria ser adjetivo. Você é tão livro, a gente diria a quem nos abre horizontes, nos aconchega, provoca e faz pensar.
“Cada um de nós é uma obra. Quanto mais você lê, mais livre, criativo e dono de si você se torna”
Livros criam pontes. Na adolescência, frequentei um clube de leitura. Desde que publico, meus leitores são como amigos e me levam a muitos lugares. No lançamento de meu romance de estreia, Suicidas, a editora fez minicadernos apenas com o prólogo para distribuição gratuita. Naquela época, voltando para casa, encontrei um morador de rua lendo o tal minicaderno. Não resisti e me aproximei. “Você gosta de ler?”, perguntei. Meio desconfiado, ele disse que gostava e reclamou: “Mas este aqui não vem completo. Já li e reli”. Minutos depois, voltei à esquina com um exemplar debaixo do braço, contei que era o autor e entreguei a ele. “Nunca havia ganho um livro de presente”, ele disse, emocionado. Na hora de fazer a dedicatória, perguntei seu nome. A resposta veio com orgulho: “Piolho. Coloca aí que é ‘pro’ Piolho”. Nunca me esqueci daquela noite.
Com frequência, eu me pego pensando na potência dos livros, das histórias que lemos e contamos uns aos outros. Mais um episódio me ocorre: em uma palestra para alunos de 7, 8 anos em uma escola pública, uma menina na última fileira ergueu a mão e me perguntou com desdém inocente: “Vem cá, deixa ver se eu entendi… Você ganha a vida inventando historinhas que saem da sua cabeça?”. Fiquei desarmado. Era simples, mas tão preciso!
É este o ofício do escritor: inventar histórias. Digo mais, é este o ofício do ser humano. Se pensarmos bem, todos nós contamos histórias. Reunimos amigos e contamos histórias. Da família, contamos histórias. Fazemos uma vida contando histórias. Inventamos a todo tempo nossa própria história. No ótimo livro A Louca da Casa, a autora Rosa Montero escreve: “Os seres humanos são, acima de tudo, romancistas, autores de um romance único cuja escrita dura toda a existência e no qual assumimos o papel de protagonistas”. Penso que é essa a resposta às perguntas lá de cima: cada um de nós é um livro. Um livro escrito em tempo real, em diálogo com outros. Quanto mais você lê, mais livre, criativo e dono de si você se torna. Aí está a potência que amedronta alguns. Seja um rebelde: dê livros de presente. E leia. Leia muito.
Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677