A rotina de um piloto de testes que leva os carros ao limite – e além
Responsável por avaliar modelos como o Mustang e a Ranger Raptor, da Ford, o engenheiro automotivo Luís Gozzani faz parte de uma elite de profissionais
Uma olhada de relance no velocímetro mostra que chegamos a mais de 240 km/h na reta. A curva para a esquerda se aproxima rápido – quase rápido demais -, mas a frenagem vem na hora certa. O carro, um Mustang GT 2024, reduz a velocidade de forma abrupta, enquanto o piloto vira o volante rapidamente, arrumando a traseira que começa a apontar para fora. Nova reta, nova aceleração. O corpo é jogado para trás, em direção ao banco. Mais curvas, mais manobras rápidas. Os pneus cantam a cada virada. A aderência ao asfalto é perceptível, mesmo quando o corpo balança de um lado ao outro, preso pelo cinto de segurança e protegido por um capacete. Quem vê de fora a velocidade e o movimento do carro pode ficar assustado, mas dentro da cabine a sensação é outra. Há uma percepção clara de segurança e de que cada movimento é executado com precisão. Ao volante, o piloto de testes Luís Gozzani está em seu ambiente de trabalho.
Descemos do Mustang e seguimos para a pista offroad, parte do enorme complexo da Ford em Tatuí, no interior de São Paulo, onde seus veículos são levados ao limite em busca de ajustes que precisam ser feitos. Subimos a bordo da Ranger Raptor, versão mais radical da picape média, projetada para desafios extremos. “Preciso de um segundo para trocar o ‘chip'”, brinca Gozzani, “porque aqui a direção é completamente diferente”. Modos de segurança, como o controle de tração, são desligados. Foram projetados para ajudar motoristas comuns, mas aqui o caso é outro. A caminhonete acelera em trechos de areia e de pedras soltas, que voam para os lados e batem na carroceria com força. A traseira derrapa nas curvas, mas a frente, apontada para a direção certa, sempre leva a melhor. No final do circuito, saltamos em uma rampa e saímos quase um metro do solo antes de aterrissar com um baque rápido.
As pistas, de asfalto ou de terra, são o habitat natural de Luís Gozzani, o único piloto da América Latina no “tier 4“, categoria mais elevada de quem trabalha diariamente dirigindo carros que ainda não foram colocados no mercado. Ele faz os testes mais extremos em circuitos fechados para entender onde estão falhas no projeto e até onde cada veículo pode ser levado. Trabalha há quase 20 anos na Ford, onde começou como engenheiro de dinâmica veicular antes de se tornar o piloto mais especializado do time.
A divisão em “tiers“, ou “categorias“, é feita para indicar até onde cada piloto pode dirigir. A categoria 1 é voltada para quem dirige fora das pistas, apenas ao redor dos prédios. Sabe como funciona, mas não faz os testes. A categoria 2 é composta pela maioria dos pilotos que de fato testam os carros na pista. Eles podem andar até 200 km/h, se a pista permitir. Fazem testes até antes do limite de aderência do pneu e não fazem frenagens de emergência. Na categoria 3, entram frenagens brutais e testes muito próximos do limite do veículo. Já a categoria 4, na qual Gozzani é o único representante na América Latina, é reservada aos profissionais que vão além do que cada carro é capaz. “Fazemos testes que não têm procedimento, criamos coisas novas, testamos veículos com modificações radicais ou forçamos uma falha, uma quebra proposital de uma peça”, conta o piloto. O nível de habilidade entre as categorias 3 e 4 é semelhante, mas o ranking mais alto exige mais experiência e a capacidade de treinar outros para encarar os desafios das pistas.
A história de Gozzani com a velocidade é antiga. “Uma das minhas memórias mais antigas é a do vento batendo no rosto. Quando tinha quatro anos, meu pai me levou para passear de moto, e o barulho do motor e a sensação de movimento fazem parte da minha vida”, conta. Entrou na faculdade de engenharia já pensando em trabalhar com automóveis. Competiu na disputa Mini Baja, em que instituições de ensino superior disputam para ver quem projeta o melhor veículo offroad. O nome faz referência ao clássico circuito Baja 1000, no México, um dos mais extremos. E, com sua equipe, venceu. Enquanto estudava também praticou usa habilidades de pilotagem em corridas de kart. “Foi muito bom, aumentou muito minha experiência”.
Na Ford, atua há 16 anos como piloto. Foi subindo de categoria até fazer a certificação do chamado “tier 3”. “Eu já tinha ouvido falar da categoria acima, mas uma coisa é querer e outra, bem diferente, é conseguir”, conta. Foi preciso mostrar, de forma contundente, que poderia ser o único piloto da América do Sul a obter o nível mais alto. E fez isso enquanto se credenciava como piloto da categoria 3. Foi enviado para os Estados Unidos para um treinamento de duas semanas em que o objetivo é atingir o mesmo nível do instrutor. “São seis horas por dia dirigindo. É puxado. Mas a meta é mostrar que você atingiu um nível de segurança muito bom”, conta ele. Porque o trabalho de testes não significa apenas entrar no carro e dirigir veloz e tecnicamente. “Estamos expostos ao perigo. É preciso garantir que a segurança, as regras e os protocolos são muito bem executados e pensados para minimizar os riscos”, afirma. Isso inclui desligar das preocupações no momento de entrar no carro, e reconhecer quando o psicológico pode afetar o trabalho.
Todo esse treinamento tem um único fim: garantir que o carro testado vai ficar bom. A experiência e a habilidade vão se acumulando para que em determinado momento a direção se torne quase mecânica e o piloto possa “ouvir” o que o carro está comunicando. “Tenho que estar com muito do meu cérebro livre para receber e processar informações sobre a direção, o ‘grip’ do pneu, o conforto, o ruído”, diz Gozzani. “Você sente o carro de forma muito profunda, quase subconsciente”. É totalmente diferente de dirigir para registrar um recorde de velocidade, por exemplo, em que a atenção está focada no traçado, na frenagem e em cada oportunidade de reduzir alguns segundos.
É um trabalho técnico e preciso. Cada teste avalia uma determinada particularidade do carro. Não é a mesma volta que analisa, por exemplo, pneus e direção. Existem circuitos mais amplos que estudam o veículo como um todo, mas são níveis menos profundos de atributos. É por isso que um profissional como ele não pode “se empolgar” durante os testes. “A adrenalina é quase um veneno, porque afeta sua capacidade de percepção clara”, diz.
E, claro, cada tipo de carro exige um olhar específico. Um esportivo, como o Mustang, vai exigir atenção em grip de pneu, resposta da direção, troca de marchas. Em uma picape como a Ranger, ele terá que prestar atenção na resposta dos pneus em diferentes superfícies, no ajuste de suspensão, na capacidade de subir em uma pedra. Em um elétrico, como o Mustang Mach-E, o ruído dos pneus, por exemplo, se torna muito mais incômodo sem o barulho do motor à combustão, portanto é um ponto crítico para o teste de conforto. Em média, são dois a três de engenharia para que o carro esteja pronto para o mercado.
No caso do Brasil, como os veículos são projetados no exterior, muitos dos testes são feitos para adaptar o veículo à realidade local. São mudanças na suspensão, troca de pneus ou pequenos ajustes focados na experiência dos consumidores daqui. “É difícil fazer mudanças drásticas, porque os acertos dos carros estão muito mais globalizados”, diz Gozzani. Afinal, carros são produtos e, para a maior parte dos consumidores, é uma ferramenta de transporte do ponto A ao ponto B. “Para o entusiasta, a direção proporciona prazer, mas o mercado olha cada vez menos para isso”, diz. Carros de maior volume, portanto, têm que agradar consumidores que não estão tão acostumados com a experiência de dirigir. Os esportivos, por outro lado, tendem a se tornar ainda mais modelos de nicho.
Quanto não está dirigindo a trabalho, o que ele prefere? As pistas de asfalto ou de terra? “Difícil dizer. O offroad tem um elemento imprevisível. Você passa uma vez e as pedras já mudaram de lugar. É super desafiador”, conta. “Mas eu tenho uma queda pelos esportivos.”