“Sou odiado pela esquerda e pela direita”, diz Lobão sobre política
Roqueiro conversou com VEJA sobre show em que conta "causos" divertidos sobre sua vida e carreira
Aos 67 anos, João Luiz Woerdenbag Filho, o Lobão, é um dos incontornáveis nomes do rock nacional. Dono de hits como Me Chama, Essa Noite Não, Bla, Bla, Bla… Eu Te Amo, Vida Bandida e muitos outros, o músico está celebrando 50 anos de carreira com shows intimistas, o Luau Indoor, onde se apresenta apenas em voz e violão. Entre cada canção, o músico relembra momentos da carreira e conta causos inacreditáveis de sua história. E bota inacreditáveis nisso, como o dia em que bandidos o fizeram de refém junto com Cazuza e roubaram o carro e uma guitarra no Rio de Janeiro, ou quando ficou preso em um elevador em um hotel de Ipanema com Robert De Niro, após o astro hollywoodiano bater um pratão de macarronado em seu quarto.
Em entrevista a VEJA, feito pouco antes de um show no Blue Note, em São Paulo, Lobão contou que deixou os comentários políticos, muitas vezes raivosos, de lado para se dedicar aos seus gatos e a estudar música. Limpo das drogas há anos, ele diz que a única coisa que a esquerda e a direita concordam é que ele é um “drogado e decadente”. “Fiquei no meio desse tiroteio entre duas facções”, diz. Frasista de mão cheia, o músico falou ainda sobre a histórica briga que teve com os Paralamas do Sucesso – e as pazes que fizeram depois. Criticou grandes festivais, como Rock in Rio, e lamentou a caretice da música atual. Em seu próximo álbum autoral, Vale da Estranheza, previsto para o final do ano, ele reflete sobre o mundo moderno, cujo título do álbum se refere a um conceito sobre a aversão que as pessaos sentem por robôs semelhantes a humanos. Confira a seguir os melhores momentos do bate-papo:
No Luau Indoor você relembra histórias hilárias de um período menos careta do Brasil, em que o país acabava de sair da ditadura. O Brasil está mais conservador? Não só o Brasil. Eu acho que o mundo todo. O politicamente correto deixou as pessoas muito restritas. Tem o cancelamento. Se você uma coisinha fora da caixinha, você evapora. Isso tudo causa uma retração de criatividade. Você não pode se expandir. Você não precisa ter nenhuma censura centralizada hoje porque todo o arcabouço de leis sociais já fazem com que humor, por exemplo, só tenha coisas bem macias, tipo “cocô, xixi, pum”. O humor é naturalmente incorreto. Para você fazer humor você tem que ser cruel. Isso se reflete na música também e no comportamento geral das pessoas.
Das histórias impagáveis que você conta no show, as melhores envolvem o Cazuza. Sente saudades daquela amizade? Claro. Eu morri de rir com o Guia Michelin de 1986 que dizia que no Baixo Leblon era possível encontrar vários restaurantes e também tropeçar em personalidades como Cazuza e Lobão. Frequentávamos tanto lá que fomos eleitos como atração turística. Liguei para o Cazuza e disse que a gente estava parecendo o Mickey Mouse e o Pato Donald da Disneyland. Éramos o rodo e o pano de chão. Eu também sempre conto a história do escort cor-de-rosa do Cazuza. A dona Lucinha já me corrigiu e disse que Escort do Cazuza era vermelho. Mas ele era rosa, sim. Conto desse carro porque fomos feitos reféns na minha casa por bandidos armados. Estava eu, o Cazuza, Neville d’Almeida, umas oito pessoas. Entraram dois adolescentes na casa e um deles estava com um 38 e eles queriam nos amarrar no banheiro. Eu olhei para um deles e disse que no tambor do revólver só cabem seis balas. Se eles descarregassem a arma toda e conseguissem matar seis, ainda sobrariam três. Aí, eu peguei a chave do Escort cor-de-rosa e entreguei para ele e entreguei também uma guitarra. O Cazuza ficou bravo, mas o carro estava no seguro.
Você já disse que o Cazuza não teve o talento reconhecido em vida, somente após a morte. Por que? É sempre assim. O Raul Seixas também. O Raul estava cheirando éter quando morreu. Ele estava ruim de grana e ninguém se lembrava mais dele. Aí ele morreu e virou um Deus. A morte sempre dá um holofote de valoração. É triste por um lado, mas é corriqueiro. É como no mercado de artes plásticas. Morre um pintor e pum, sobe o preço.
Por falar em morte, é verdade que o Wagner Montes quase te matou? Isso foi na época em que eu namorada a Monique Evans. Estávamos num baile de carnaval no Monte Líbano e brigávamos por ciúmes o tempo inteiro. Na época ela até raspou a cabeça. Eu tinha dito que ela havia ficada linda de cabeça raspada. Aí, no baile, eu subi em cima de uma mesa ao lado de uma chacrete. Ela ficou brava e foi para o camarote do Wagner Montes. Eu respondi: “vai lá ficar com aquele perneta”. Ela chegou lá e contou o que eu falei. Quando fui procurá-la, ele já abriu a porta do camarote com uma arma. Me desculpei dizendo que perneta era apenas uma terminologia técnica, já que ele, realmente, não tinha uma perna.
Foi mais ou menos nessa época que você ficou preso no elevador com o Robert DeNiro. Como aconteceu essa “coincidência”? Eu morava em hotel na praia de Ipanema, perto do Jardim de Alah. Foi em 1985 e tava rolando o Rock in Rio, carnaval no Sambódromo, um monte de coisa. O Robert de Niro estava no Brasil para gravar o filme The Mission e ficou no mesmo hotel. Eu tinha acabado de brigar com a Monique, no mesmo ano que ela arrebentou na Sapucaí. Aí eu estava no meu quarto cheirando com o Neville d’Almeida e o Robert bateu no meu quarto. Ofereci cocaína para ele, mas ele recusou. Ele queria engordar 20 quilos para o filme e pediu uma macarronada enorme. Ele não quis cheirar mas pegou uma pedra enorme e comeu. Ouvimos A Sagração da Primavera, do Ígor Stravinski, altíssimo, no meio do carnaval. Quando resolvemos descer par ao lobby, o elevador para. Ficamos lá, uns 30 minutos, suados, esperando o elevador abrir.
Por anos, você e os integrantes dos Paralamas do Sucesso ficaram brigados. Alguns anos atrás, vocês retomaram a amizade. Como foi isso? Anos atrás, se eu lançava Me Chama, eles lançavam Me Liga. Fiz Cena de Cinema e eles Cinema Mudo. Fiz Revanche e eles Alagados. Foram 20 anos, até pegarem a bateria da Mangueira com Funk n’ Lata e Vamos Bater Lata. Eu fiquei puto. Não era plágio, mas os mesmos conceitos. Eu sabia que eles eram meus fãs. Tudo mudou após o acidente do Herbert e soube que quando ele saiu do coma, a primeira coisa que pediu foi um violão e tocou Me Chama. Fiquei comovido. Um dia, num bastidor de uma premiação, eu o vi na cadeira de rodas e ele me abraçou como se fosse uma criança. Vi a resiliência dele, o compromisso em criar os filhos e conseguir heroicamente seguir com a banda. Eu comecei a ter um carinho muito grande por ele.
Nos anos 2000 você lançou discos nas bancas de jornal com a revista OutraCoisa. Foi um jeito que você encontrou para contornar as gravadoras. Hoje, temos outra potência, que são os serviços de streaming. Como navegar nesse novo ambiente? Na época, eu queria alertar sobre a força daquela indústria. Mas é uma indústria necessária. As plataformas de streaming, por outro lado, hoje são muito cruéis porque a arrecadação é zero. Você só começa a ganhar centavos depois de um milhão de execuções. É uma coisa absurda. Isso está atrelado também a uma qualidade inferior de som. Há, por outro lado, um estouro da bolha dos algoritmos. Quando vou ver um filme, ás vezes eu passo 40 minutos, uma hora, duas horas, às vezes eu passo a tarde inteira procurando e não encontro nada que me agrade. Eu fico até ofendido quando o algoritmo me diz que tal filme é a minha cara.
Hoje, o rock não figura entre os dez ritmos mais ouvidos do Brasil. Parafraseando seu disco de 1986, o rock errou? Não é uma questão do rock. Eu faço rock muito bem e continuo fazendo. Eu acho que é uma conduta cultural e psicológica mesmo de um showbussiness que atrela o rock como um produto dos anos 1980, algo nafitalínico, mumificado e fossilizado. É museu de velhas velharias. Isso não é rock, é função de morte. Está virando uma coisa mórbida. Ano passado, eu fiz uma concessão com o meu show de 50 anos de Vida Bandida, um disco que eu não tenho muito apreço. E foi uma porcaria. O que mais fascina no rock é que ele é uma coisa viva e pulsante. Pedra que rola não cria limo.
Onde o rock acertou? Uma coisa que eu não tinha atentado é que os anos 1980 tiveram uma característica singular: eles inventaram a melopéia do rock brasileiro. Nos anos 1970, você teve alguns rasgos disso, com os Mutantes, com a Rita Lee e o Raul Seixas. O grande barato dos anos 1980 foi levar o rock para dentro do cancioneiro da música popular brasileira. Você pega as músicas do Renato e do Cazuza, todas elas soam naturais. Parece que o idioma finalmente casou e com beneplácito do próprio tempo a gente percebe isso. Com a distância, percebemos que se tornaram verdadeiros clássicos da música popular brasileira, não só do rock.
Desde o Rock in Rio de 1991, quando você abandonou o palco, dificilmente você participou festivais do gênero. Por que? Estou me cag**** para isso. Eu acho até um insulto ser cogitado para participar desse festival. Quando um fã desavisado diz que sente falta de um show meu no Rock in Rio, eu acho um insulto. Enquanto eles tiverem uma filosofia de não apoiar as bandas brasileiras, eu me recuso. Aquilo foi um desrespeito. Mudaram meu palco faltando 24 horas para eu tocar. Eu tinha um contrato que eu teria 40 metros de boca de cena e 20 metros de profundidade. Eu sabia que teria animosidade e restringiram meu espaço no palco. Começaram a tacar coisas no palco e eu saí. Me disseram que se eu não quisesse fazer o show seria até melhor, porque o Guns N’ Roses queria entrar e eu estava atrasando. Ninguém iria acreditar em mim, porque eu era um drogado. Quando entrei no palco, me deram um capacete com uma cruz vermelha. O engraçado foi que eu havia feito aquele mesmo show um ano antes no Hollywood Rock e foi eleito pela crítica o melhor do festival. E eu concorri com Bob Dylan, Pretenders, Tears for Fears, Bon Jovi.
Algo semelhante aconteceu em 2024, com a Ludmilla, que ameaçou não se apresentar após mudarem o palco dela para o Travis Scott. Nada mudou? Perceba que isso não acontece na Argentina com o Charly Garcia ou Fito Páez porque eles são patrimônios deles. Por que coisas assim acontece por aqui? Porque o empresariado tem essa mentalidade. Até 1985, o Brasil vivia um fenômeno em que as pessoas gostavam mais do Legião Urbana do que do Joy Division. Gostavam mais do Paralamas do Sucesso do que do The Police. O Rock in Rio foi um cadafalso que a gente subiu. Aquilo acabou com a dignidade do rock brasileiro. Que eu saiba, a única pessoa além de mim, como artista, que teve coragem de peitar o Rock in Rio foi a Anitta. Ninguém fala mais nada. Anitta foi corajosa suficiente para falar mal. Não sei qual artista foi catapultado para o sucesso depois de tocar num festival como esse. É feito para você pagar mico e te tratorizarem.
Você se tornou persona non grata? Sempre fui persona non grata e não estou nem aí. Estou cag**** baldes.
Você sempre fala dos porres e das drogas, mas desde 1991 que você está limpo. Como aconteceu isso? Eu brinco que eu fui no Rock in Rio levar lata e saí de lá com a minha gata. A droga estava ficando muito repetitiva. Aquilo tava me deixando num pantanal. Já não era uma aventura. Eu falei com a minha esposa: vamos parar. Eu era um autor sazonal e eu queria ser um autor de verdade. Fui ler Odisseia, Eneida, Rabelais, Shakespeare. Eu precisava acordar cedo e precisava ter uma motivação forte. Eu me coloquei metas. Fui estudar violão clássico, aprendi a ler partituras. Estudei muito. E nunca mais voltei a cheirar. Continuei a fazer isso. Troquei a droga pelo estudo.
Você já disse que detestava política e nunca teve time de futebol. No entanto, seu passado recente mostrou o contrário. O que aconteceu? Quando eu tinha muita exposição, lá em 1988 ou 89, o próprio PT veio falar comigo. Eu nunca gostei do PT. Nunca gostei de política. Eu sempre achei detestável. Eu era muito perseguido pela polícia. O Sarney chegou a proibir um show meu em um estádio. O aparato político e judicial era o mesmo da ditadura. Nessa onda, eu pensei que seria melhor acabar com esse resquício de ditadura e aí entrava o paradigma: eu teria que apoiar o PT. Cheguei a participar de um comício para um milhão de pessoas e o Luiz Carlos Prestes segurou o microfone para mim. Você consegue imaginar isso? Eu perguntei: “Cadê me pedestal” e ai veio aquela voz: “Sou eu, companheiro. Vai lá meu camarada”. E segurou o microfone para mim. Eu achei legal para caralho. Fiz colônia de férias do MST. Fui amigo do [José] Genoíno, um cara muito simpático. Mas tudo começou a desandar na eleição do Lula, em 2002. Vieram os rumores de corrupção. Quando a Heloísa Helena resolveu romper com o PT, eu fui com ela. Eu disse que achava uma palhaçada. Disseram que eu era tucano e eu nunca votei no Fernando Henrique. Mas a coisa degringolou mesmo quando passaram a distorcer coisas que eu fazia. Eu comecei a reagir e fiquei obcecado. O PT contratou um psiquiatra para me diagnosticar com demência. Disseram que eu matei a minha mãe, que eu fui “assassino de mãe”. Uma coisa horrorosa. Pisaram no meu calo. Aí, quando chegou na Dilma, eu disse que iria atrás do primeiro que tivesse potencial de vencer o PT, que já estava há 16 anos no poder. Quando o Bolsonaro foi eleito, na primeira semana que já fiquei contra. Agora, eu sou odiado pelos dois lados. E os dois lados são idiotas iguais. Não adianta conversar porque a coisa virou Fla-Flu. Virou paixão de futebol. Tem desonestidade intelectual dos dois lados. Os dois não admitem que os senhores presidentes são desonestos.
E agora? Vivemos uma coisa engessada. Vivemos um estado de fossilização ideológica. Quando eu percebi isso, pensei: “Estou no meio desse tiroteio entre duas facções que são absolutamente imbecis”. Eles são sectários, fanáticos e não adianta, não há razoabilidade. Você não vai conversar um milímetro tanto de um lado quanto do outro. Chegou um momento em que eu fui num botequim e uma pessoa me chamou de comunista, drogado e decadente. Veio outra pessoa e me chamou de fascista, drogado e decadente. Só mudava o preconceito. Eu desisti e fui fazer jardinagem, cuidar dos meus gatos e debruçar na minha produção musical, porque não dá para querer militar.