Série ‘Pistol’ mostra saga da banda que fez o rock estremecer
O diretor Danny Boyle recria com brio a saga da banda que simbolizou o movimento punk
Corria o ano de 1977, e no Reino Unido só se falava do Jubileu de Prata da rainha Elizabeth II. O agitador cultural Malcolm McLaren (Thomas Brodie-Sangster) precisava criar um fato forte para chamar a atenção dos jornais para o Sex Pistols, grupo musical inventado por ele com jovens desajustados e niilistas, mas claramente sem talento. Em 7 de junho daquele ano, em pleno feriado do jubileu, McLaren levou a cabo sua ideia mais ousada: ancorou um barco no meio do Rio Tâmisa, em frente ao Parlamento britânico, e pediu que Johnny Rotten (Anson Boon), Steve Jones (Toby Wallace), Paul Cook (Jacob Slater) e Sid Vicious (Louis Patridge) tocassem God Save the Queen, canção com o mesmo título do hino do país, mas letra nem um pouco simpática à monarca: “Deus salve a rainha / E seu regime fascista / Ela faz de você um idiota”, diziam os versos de abertura. Quando o grupo finalmente desembarcou, ninguém foi preso: apenas houve uma repreensão verbal da educada polícia londrina. Indignado com tamanha cortesia (que não renderia manchetes), McLaren ofendeu os policiais e tentou agredi-los — até que conseguiu ser algemado e preso. No dia seguinte, não deu outra: os Sex Pistols eram tão falados quanto a rainha. A novata banda atingiria o primeiro lugar das paradas.
A célebre molecagem detonou a explosão do punk, um dos movimentos mais ruidosos do rock, na Inglaterra dos anos 1970. Quarenta e cinco anos depois, coincidentemente neste 2022 que marca mais um jubileu de Elizabeth II, a cena é recriada pelo diretor Danny Boyle na minissérie Pistol, que estreia nesta quarta-feira, 31, na plataforma Star+. Com roteiro baseado no livro autobiográfico do guitarrista Steve Jones, Lonely Boy: Tales from a Sex Pistol, a série mostra esses e outros momentos antológicos do grupo que entraria para a história como o suprassumo da rebeldia punk.
Sex Pistols – Spunk [Disco de Vinil]
Boyle narra a saga dos Sex Pistols não só com a direção ágil ou os enquadramentos pouco óbvios de praxe: ele é, sobretudo, alguém que viveu sua juventude no período. Assim como em Trainspotting (1996), seu clássico retrato da geração das raves, Boyle infunde a realidade punk com certa euforia delirante — e por vezes trágica. Encontra um excelente fio condutor na relação entre Jones e McLaren. À época com 31 anos, McLaren queria sacudir a sociedade britânica e teve como marionete de seu plano Jones, um analfabeto funcional que vivia furtando a loja de roupas Sex, fundada pelo empresário e sua esposa, a estilista Vivienne Westwood (Talulah Riley). Na cabeça de McLaren, a música era o que menos importava: a fagulha revolucionária do punk estava na atitude rebelde e no lema do “faça você mesmo”, que dava a qualquer jovem sem formação musical o direito de fazer barulho sem pudor.
Crescendo com os Sex Pistols: Precisa-se de sangue novo
Aplicada na criação e promoção do Sex Pistols, a tática deu certo — ainda que por um reinado efêmero. A banda durou três anos e lançou só um álbum, Never Mind the Bollocks. Apesar da existência curta e grossa, foi responsável por influenciar inúmeras outras bandas — essas, sim, talentosas. “É difícil imaginar um conjunto como o Sex Pistols surgindo hoje, especialmente porque não existiria a indústria musical atual se não fossem esses caras”, disse a VEJA o ator Jacob Slater, que faz as vezes do baterista Paul Cook. Faz sentido: se musicalmente os Pistols viraram só uma relíquia do passado, a lógica da rebeldia fabricada para repercutir e trazer sucesso seria copiada e aperfeiçoada por toda sorte de gênero, das boy bands ao rap. O que torna o marqueteiro McLaren, vivido com brio por Thomas Brodie-Sangster (confira a entrevista), o grande herói do punk.
Never Mind the Bollocks [Disco de Vinil]
Fazer pose de rebelde não era tão difícil para os integrantes da banda. Eles travavam intensas brigas — e continuam se estranhando até hoje: Johnny Rotten não aprovou o roteiro e disse que a série vai contra tudo em que eles acreditavam. Mas, mesmo aos trancos e barrancos, a banda poderia ter durado mais alguns anos se Sid Vicious não tivesse morrido aos 21 de overdose de heroína, após ter sido acusado de matar a facadas a namorada Nancy Spungen (Emma Appleton). Atualmente, a atitude subversiva do punk sobrevive em ritmos como o rap e o funk. É na moda, contudo, que sua herança se faz presente com mais força. E muito disso se deve à mítica loja de roupas Sex e sua dona, Vivienne Westwood, de 81 anos. Foi ela quem criou o símbolo da anarquia, que se tornaria tão popular quanto a foice e o martelo do comunismo. “Sem Vivienne, não haveria punk”, diz Talulah Riley, que a vive na série. Como se vê, era tudo uma questão de imagem.
“Ele era um marqueteiro”
O inglês Thomas Brodie-Sangster falou a VEJA sobre Malcolm McLaren e a minissérie Pistol
Um novo McLaren poderia surgir e revolucionar a música hoje? Se surgisse alguém querendo ser uma versão moderna de Malcolm McLaren não funcionaria, porque soaria falso e ele não era nada disso. Era um marqueteiro muito bom, isso sim. Um novo McLaren teria de ser autêntico, tal como a energia punk, e fazer algo completa e escandalosamente diferente do que já foi feito.
A série foi lançada durante o Jubileu de Platina da rainha. O que achou da coincidência? Não sei se foi intencional ou não, mas Londres está bastante patriótica nos últimos meses. A magia dos Pistols era dizer: você pode ser o que quiser. E esse sentimento ainda é muito forte no Reino Unido. Nos anos 1970, os punks vendiam a ideia de que você não precisava ser um produto da geração anterior, traumatizada pela II Guerra — você poderia ser diferente. A ideia é tão sedutora que marcaria as gerações seguintes.
John Lydon tentou proibir o uso das músicas dos Sex Pistols na série. O espírito brigão da banda continua igual? Entendo o ponto de vista do Johnny, mas a série não é um documentário. É algo dramatizado. Haverá coisas que agradarão a alguns e outras, não. A memória é uma fonte de informação muito ruim, especialmente se você estava sob o efeito de drogas e álcool e Deus sabe o que mais.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804
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