O revelador documentário sobre Lupicínio Rodrigues, ‘avô’ da sofrência
Um belo doc reconta a vida do sambista gaúcho que criou a dor de cotovelo, enfrentou o racismo e foi indicado ao Oscar à sua revelia
Em meados de 1948, um amigo de Lupicínio Rodrigues o procurou extasiado após assistir ao musical Dançarina Loura (1944). Durante quase dois minutos, o casal formado pelos astros Belita e James Ellison dançava ao som instrumental de Se Acaso Você Chegasse, uma de suas mais belas composições — que ficaria famosa na voz de Elza Soares. Imediatamente, o músico foi ao cinema conferir. De família humilde, nascido na Ilhota, uma favela gaúcha da época, Lupicínio saiu da sala maravilhado em ver sua criação em Hollywood. Ele ainda não sabia, mas a faixa também fora indicada ao Oscar — só que com o título Silver Shadows and Golden Dreams e creditada a Lew Pollack e Charles Newman. Em seus 59 anos de vida, o brasileiro nunca foi consultado nem autorizou o uso da canção, tampouco procurou reparação na Justiça. A revelação inédita é apenas uma das inúmeras pérolas do documentário Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor, em cartaz nos cinemas. “Provavelmente a faixa chegou aos Estados Unidos por meio da política de Getúlio Vargas de levar músicas do Brasil para as rádios americanas”, diz o diretor do filme, Alfredo Manevy.
Os poucos registros em vídeo e um punhado de fotografias que Lupicínio deixou foram resgatados numa meticulosa pesquisa feita por Lucas Nobile (também autor de uma biografia de Dona Ivone Lara). Três grandes entrevistas foram restauradas, em que se ouve sua voz suave e melodiosa e se expõe um compositor atormentado pelas dores do amor, mas que nunca perdia o humor. “Avô” da sofrência (a memorável Nervos de Aço que o diga), Lupicínio era visto nos bares com os cotovelos no balcão enquanto sofria por amor — daí a expressão “dor de cotovelo”. Amigo de outros sambistas sofredores, como o carioca Nelson Cavaquinho, ele garantia que as músicas doloridas eram inspiradas em suas histórias. O clássico Felicidade versava sobre sua primeira algoz amorosa, a gaúcha Inah. Para a carioca Mercedes, escreveu o hino da sofrência, Vingança. A esposa, Cerenita, com quem se casou na maturidade, deu mote a Exemplo.
Negro e pobre, Lupicínio foi discriminado por sua classe social e cor da pele. Em 30 de novembro de 1966, já famoso, foi barrado num bar em Porto Alegre. Amparado na Lei Afonso Arinos (1951), chamou a polícia, tornando-se o primeiro na cidade a invocar a lei contra o racismo. No futebol, também rompeu barreiras. Numa época em que Grêmio e Internacional não aceitavam jogadores pretos, tornou-se torcedor do tricolor gaúcho porque o time foi o único a aceitar treinar com a Liga dos Canelas Pretas, escrete de seu pai formado só por negros. Em retribuição, compôs o hino gremista e foi o primeiro na sua condição a ser aceito como sócio do clube.
Em sua carreira, Lupicínio não se importou ainda em apoiar novos movimentos, como a Bossa Nova e a Tropicália. “Se continuássemos cantando só samba-canção, o Brasil seria como a Argentina, onde só se ouve tango”, dizia. Graças às revelações do documentário, a família de Lupicínio decidiu exigir o crédito de Se Acaso Você Chegasse junto ao Oscar. Eles serão representados pelo advogado da Rihanna, Miles Cooley, que é casado com uma brasileira e ofereceu seus serviços de graça. Antes tarde do que nunca, justiça seja feita ao bamba sofredor.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884