Mostra reavalia o legado de Yoko Ono: algoz dos Beatles ou visionária?
Exposição em Londres a celebra como pioneira do feminismo na cena artística e propõe uma nova visão sobre sua relação com o beatle
A história sobre como John Lennon e Yoko Ono se conheceram é indissociável do imaginário sobre os Beatles. Em 9 de novembro de 1966, o cantor visitou uma exposição numa galeria londrina. Lennon afirmava não saber quem era Yoko, mas a artista japonesa sabia quem ele era, claro, e o acompanhou pessoalmente no tour. Lennon se interessou por obras como uma modesta maçã verde num pedestal. Ao perguntar quanto custava, Yoko jogou o valor lá em cima: 200 libras (pouco mais de 1 200 reais). Atrevido, o roqueiro pegou a fruta e mordeu — e a artista não gostou. Outra peça que chamou a atenção foi Ceiling Painting, que consistia numa escada com uma lupa para olhar um pedaço de papel no teto com a inscrição “sim”. Ele ficou maravilhado ao ler algo tão positivo. Mas a obra que fez os olhos do beatle se prenderem em Yoko foi Painting to Hammer a Nail In (Nº 9). Tratava-se de uma placa na parede na qual era possível martelar pregos. Lennon perguntou se poderia bater num deles. Yoko disse que custaria alguns centavos. “Vou dar a você 5 xelins imaginários e martelar um prego imaginário”, ele respondeu. Ela sorriu — e ambos nunca mais se separaram.
Algumas das obras que contribuíram para o engate do famoso romance integram o acervo de Yoko Ono: Music of the Mind, exposição que acaba de entrar em cartaz na Tate Modern, em Londres — e é a maior retrospectiva da artista já feita no Reino Unido. Mais que espiar os bastidores do relacionamento dela com Lennon, a mostra é uma oportunidade para examinar algo menos óbvio: qual o valor, afinal, do legado de Yoko Ono como artista plástica? Com 91 anos completados no domingo, 18, ela até hoje é vista por muitos como a megera responsável por separar os Beatles e minar a carreira do marido — ainda por cima, ganhando fama com isso. Os 200 itens em exibição em Londres — incluindo objetos, textos, instalações, filmes, músicas e fotografias — lançam uma provocação que inverte essa lógica: e se, na verdade, foi justamente o casamento com Lennon que inibiu a carreira de uma mulher destinada a brilhar nas artes?
Embora a premissa seja controversa, a exposição resgata indícios de que Yoko foi de fato uma artista pioneira e capaz de romper barreiras quando ainda não conhecia o beatle. Vídeos do início dos anos 1960 recuperam performances criadas e protagonizadas por ela que são exemplares do que viria a ser chamado de arte feminista — bem antes de a tendência surgir. É o caso de Cut Piece, de 1965, em que Yoko entrava numa sala vestida, entregava uma tesoura ao público e deixava que cortassem pedaços de sua roupa até ela ficar nua. A artista tinha uma sensação real de violação, mas o que lhe importava eram os questionamentos que surgiam no público.
Plastic Ono Band [Disco de Vinil]
Yoko foi uma mulher ousada numa seara que, apesar de moderna e liberal, ainda era dominada por homens. Tanto que ela se irritou quando seu nome não foi creditado entre os criadores de um de seus primeiros happenings — a forma de arte contemporânea em que é impossível dissociar a experimentação estética da pura piração. O único crédito que lhe deram foi como dona do loft onde a coisa toda acontecia em Nova York. Ainda assim, Yoko foi se impondo — em trabalhos solo ou no grupo Fluxus — como desbravadora da então nascente arte conceitual, altamente influenciada pelo trabalho iconoclástico do francês Marcel Duchamp (1887-1968).
As letras dos Beatles: A história por trás das canções
Quando Yoko se uniu a Lennon, veio o efeito colateral: a parceria potencializou não seu ímpeto inovador, mas a autocomplacência tão comum entre artistas contemporâneos, realçando certa obviedade pueril de suas obras. A obsessão pela paz, que nasceu dos traumas de infância no Japão durante a Segunda Guerra, converteu-se numa militância riponga e algo demagógica junto do marido (canções como Imagine tinham ressonância inegável em sua época, mas hoje podem soar ingênuas). De artista de vanguarda, ela passou a surfar na fama — e daí vieram lances lamentáveis como a tentativa de virar cantora em discos ao lado de Lennon. De uma coisa, contudo, Yoko não pode ser acusada: de ter enriquecido à custa do beatle. Vinda de uma família abastada, ela é herdeira de um dos maiores bancos do Japão e estudou com filhos do imperador do país. Imagine se tivesse sido Yoko Ono, apenas.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881