Filme sobre Beth Carvalho revela baú de imagens inéditas da sambista
Novo documentário resgata 800 horas de vídeos caseiros feitos pela cantora
Beth Carvalho (1946-2019) já era uma estrela do samba no início da década de 70, aos 20 e poucos anos, quando Cartola a chamou para mostrar algumas novas composições. Na época aos 65, o bamba andava deprimido. Apesar da longa carreira, ele nunca havia tido a oportunidade de gravar um álbum. O compositor, no entanto, era idolatrado por Beth. Ao saber que ele tinha novidades, a cantora imediatamente subiu o Morro da Mangueira para encontrá-lo — e, quem sabe, voltar de lá com uma boa canção. No violão, o sambista tocou As Rosas Não Falam e O Mundo É um Moinho, hoje dois clássicos incontornáveis da música brasileira. Lançada no álbum Mundo Melhor (1976), As Rosas Não Falam se tornaria um dos maiores sucessos da carreira de Beth e daria a Cartola, finalmente, a chance de gravar seu primeiro álbum. O registro em áudio desse momento histórico é uma das pérolas do documentário Andança: os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, em cartaz nos cinemas. Com acesso inédito a mais de 800 fitas VHS, cassetes e fotos, o diretor Pedro Bronz e o produtor Leonardo Bruno contam a história da intérprete por meio de vídeos e áudios amadores gravados pela própria.
Boa parte desses registros foi feita por Beth Carvalho enquanto buscava novas músicas para seu repertório. Ela gostava de ouvir os compositores tocarem ao vivo nos quintais das casas ou em botecos no subúrbio do Rio — e gravava tudo. Por meio de sua memorabilia, confirma-se que Beth não era só uma sambista de sucesso e prestígio: ela teve o papel essencial de interconectar e projetar os criadores do gênero. Até os anos 1970, suas gravações eram feitas em fitas cassete — mais tarde substituídas por câmeras filmadoras. Com seu sorriso fácil e jeito expansivo, Beth naturalmente atraía todos para sua órbita e retribuía, levando os sambistas para seus shows e apresentando-os às gravadoras. Foi assim com Cartola, mas também com Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Jorge Aragão e muitos outros — o que lhe valeu o apelido de Madrinha do Samba. “Beth baseou sua carreira em encontros. Ela não esperava o repertório chegar. Queria ver a música viva, in loco”, diz o produtor Bruno.
Em um dos registros íntimos, Beth conversa com Nelson Cavaquinho, outro gigante do samba, sobre uma nova composição. Ele, então, toca pela primeira vez Folhas Secas e Juízo Final, que também se tornariam clássicos da carreira da cantora. “Beth é uma pessoa agregadora. Ela fez amizade com os pioneiros, como Cartola e Elizeth Cardoso, com os contemporâneos, como João Nogueira e Martinho da Vila, e com a nova geração, como Zeca e Arlindo e a turma do Fundo de Quintal”, diz Bruno.
O documentário é feito apenas com imagens caseiras captadas por Beth, dando a sensação de se estar assistindo àqueles filmes antigos de família. De fato, às vezes é isso mesmo que acontece: há até cenas do nascimento da filha única da cantora, Luana Carvalho, que passou a infância acompanhando a mãe nos estúdios. Ou da festa de 40 anos de Beth, no quintal da sua casa, com a presença dos maiores sambistas do país. “Fiquei em dúvida se as pessoas iriam gostar de estar dentro da minha casa, vendo a gente cantar sambas no sofá”, conta Luana. “Hoje em dia todo mundo grava tudo, mas naquela época a atitude de Beth de registrar as rodas de samba foi revolucionária”, afirma o diretor Bronz.
Beth Carvalho – Canta o Samba de São Paulo
As lentes da cantora captam instantes de sua folclórica militância esquerdista — como o beija-mão a Fidel Castro em Havana, em 1994, acompanhada de uma comitiva que incluía Aracy Balabanian e Ney Matogrosso. Fidel pede para Beth uma cédula da então nova moeda brasileira, o real, e a autografa. “Agora a nota vai aumentar seu valor”, jacta-se o ditador cubano — provando que a cena, que sempre foi contada com ares de anedota por Beth, ocorreu de fato. O último show da cantora, no qual ela se apresentou deitada numa cama devido a problemas na coluna, em 2019, também está lá. Como prova sua maior embaixadora, o samba nunca pode parar.
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827
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