Erasmo Carlos, o roqueiro que foi rebelde até o fim
Um dos mais prolíficos e carismáticos artistas do país marcou o rock nacional — e influenciou toda uma geração de novos músicos e compositores
Se fosse possível apontar o local exato de nascimento do rock and roll no Brasil, provavelmente seria o bar Divino, na esquina da Haddock Lobo com a Matoso, na Tijuca, no Rio de Janeiro. No fim dos anos 1950, o boteco era o point de uma turma enérgica formada por jovens como Tim Maia, Roberto Carlos, Jorge Ben Jor e Erasmo Carlos — nomes que, hoje, dispensam apresentações. Desses quatro, porém, apenas Erasmo Carlos se manteria fiel até o fim às raízes roqueiras. Seu último disco, O Futuro Pertence à… Jovem Guarda, lançado neste ano, ganhou recentemente o Grammy Latino de melhor álbum de rock brasileiro. Internado às pressas com um quadro de inflamação generalizada na camada interna da pele, no hospital Barra D’Or, no Rio, na terça-feira 22, Erasmo Carlos não resistiu aos problemas de saúde que se acumulavam, e morreu aos 81 anos. Há menos de um mês, o artista comemorou uma alta hospitalar, após internação com um quadro de síndrome edemigênica. Em 2021, em entrevista a VEJA, revelou que tratava também de um tumor no fígado. “Me vejo como um menino, mas a parte física que não me obedece”, disse.
Erasmo Carlos – Gigante Gentil
Erasmo Esteves, seu nome de batismo, nasceu em 5 de junho de 1941, na Tijuca. Foi a paixão pelo Vasco da Gama — e também pelo rock — que o uniu a Roberto Carlos, um jovem capixaba, craque no violão e muito afinado, que havia se mudado alguns anos antes para o bairro. Sem dinheiro para comprar uma vitrola, Erasmo frequentava uma gravadora independente com um amigo, onde conseguia ouvir os lançamentos. O dono, percebendo o talento dele para a música, sugeriu que fizesse uma versão em português de Splish Splash, fenômeno do rockabilly americano. A letra em português, que nada tem a ver com a original, batizou o segundo álbum de Roberto Carlos, de 1963, tornando-se um hit. “Quando comecei a ganhar dinheiro, eu pensei: ‘Por que não escrever minhas próprias letras?’”, disse Erasmo sobre o sucesso repentino. Dois anos depois, a amizade com Roberto e a cantora Wanderléa foi compartilhada com o restante do país no programa Jovem Guarda, da TV Record, atração que marcou época.
Erasmo logo ganhou o apelido de Tremendão, uma gíria para rapaz boa-pinta. Com o fim da atração, em 1968, ele e Roberto seguiram carreira-solo, mantendo a amizade e também a parceria musical. São da dupla composições memoráveis como É Preciso Saber Viver, Além do Horizonte, Detalhes e Sentado à Beira do Caminho. Ao contrário do parceiro, que se acomodou na música romântica, nunca deixou de ser um artista inquieto e aberto a novas ondas, mas sem nunca tirar um pé do rock. Com o álbum Carlos, Erasmo (1971), ele se firmou como ídolo do gênero. O disco cultuado contou com faixas como a polêmica Maria Joana, que, em plena ditadura militar, falava sobre o consumo de maconha. Em paralelo com a carreira de cantor, o Tremendão conquistou espaço como compositor. Prolífico, esteve envolvido na criação de mais de 750 músicas, que foram entoadas por nomes como Nara Leão, Maria Bethânia, Gal Costa e Rita Lee.
A canção no tempo – vol. 2: 85 Anos de Músicas Brasileira
Duas tragédias marcaram sua vida e, consequentemente, sua carreira. Em 1995, sua esposa, Sandra Sayonara Sayão Lobato Esteves, a Narinha, se matou, aos 49 anos, perda que o abalou profundamente. Erasmo só retomou os trabalhos nos anos 2000, até a morte do filho Alexandre Pessoal, em 2014, aos 40 anos, em um acidente de moto. Nos últimos tempos, parecia ter reencontrado a felicidade após o casamento, em 2019, com a pedagoga Fernanda Passos, a quem dedicou inúmeras declarações de amor. O gigante gentil, apelido carinhoso e literal (ele tinha 1,93 metro), foi, de fato, enorme. Adeus, Tremendão.
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817
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