De Velvet Sundown ao k-pop: a polêmica invasão da IA nas paradas
A ascensão de bandas e de canções feitas por inteligência artificial levanta questões sobre a essência humana por trás da música

Embalado por um folk rock suave, o grupo The Velvet Sundown pede por paz na canção Dust on the Wind (“Poeira ao vento”, em português). O refrão combina frases curtas: “Levante a mão, não desvie o olhar / Cante bem alto, faça-os pagar”. A faixa frugal, mas envolvente, somou 1,6 milhão de reproduções no Spotify em pouco mais de um mês desde seu lançamento, no início de junho. O sucesso chamou a atenção especialmente pelo fato de que a banda não tinha nenhum rastro no mundo real. Quando um perfil no Instagram apresentou imagens do quarteto, o The Velvet Sundown logo foi desmascarado: as fotos eram fruto de inteligência artificial. Começaram especulações sobre como as músicas eram feitas, se a banda poderia ser considerada real e se tudo não passaria de uma jogada de marketing. O grupo — ou melhor, quem está por trás dele — se explicou. “Nem totalmente humano. Nem totalmente máquina. The Velvet Sundown existe em algum lugar entre os dois”, afirma a nova biografia da banda no Spotify. O texto diz ainda tratar-se de um “projeto musical sintético guiado por direção criativa humana” e que as composições e interpretações têm “apoio da inteligência artificial”. Apesar de não ser pioneira na produção de músicas com programas de IA, a banda de rápida ascensão, com três álbuns lançados no espaço de dois meses, borrou a linha do real e do virtual de um jeito inédito — sacudindo lógicas de produção, direitos autorais e remuneração. A fila de controvérsias é longa e vai além do peculiar grupo artificial.

O notório embate humanos versus máquinas apresenta aqui uma provocação extra: o poder impalpável de causar e representar emoções por meio da música parecia ser algo exclusivo das pessoas. Para o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), ela seria a principal expressão da complexidade da existência — e, portanto, a suprema expressão humana. Logo, o meio musical era a última fronteira da manifestação artística que parecia imune aos robôs — a IA já se infiltrou com sucesso nas artes visuais, no audiovisual e na literatura. O surgimento de um grupo com canções novas e originais, passíveis de serem confundidas pelos ouvintes, desvela um mundo novo — e desafiador.
Se fosse uma banda com integrantes humanos, a Velvet Sundown diria que bebeu de inspirações do folk de Neil Young e até da psicodelia do Pink Floyd. Por se tratar de IA, a verdade é que ela se apropriou desses artistas e de muitos outros ao compor suas faixas. Os softwares da chamada inteligência artificial generativa, ou seja, capaz de criar, são treinados com material existente do mundo real. Sendo assim, se um programa é capaz de gerar músicas novas, é porque ele teve acesso a toda produção humana — e isso sem a devida autorização ou pagamento aos compositores originais. Inovações tecnológicas são bem-vindas e inevitáveis — mas a proteção do trabalho humano e sua compensação são questões sensíveis diante de seu advento. “Ainda não há nenhum projeto adequado de lei no mundo que proteja os músicos desse uso indevido”, diz Isabel Amorim, superintendente-executiva do Ecad. A entidade nacional responsável por arrecadar e repassar o pagamento de direitos autorais aos artistas está de olho nessa mudança radical da indústria e vem se adaptando. Por exemplo: ao cadastrar uma música nas associações ligadas ao Ecad, o autor deve sinalizar se usou IA na produção — um detalhe em respeito à transparência, já que não altera a arrecadação do artista. “Somos a favor de novas tecnologias, mas não podemos permitir que abram brechas para fraudes”, diz Isabel.

Outro temor dos profissionais do meio com o avanço da IA é que estúdios de gravação e habilidades humanas como cantar e tocar instrumentos deixem de ser essenciais e se tornem opcionais. Ainda assim, de forma paradoxal, salta aos olhos uma infinidade de possibilidades que abrem caminhos para produtores independentes e caseiros. “Existem mitos ao redor da IA, como se ela fosse substituir humanos. Mas, por trás de bandas como a The Velvet Sundown, há alguém fazendo música com tecnologia”, analisou a VEJA Gerard Roma, engenheiro de som e professor de música na Universidade de West London.

Apesar das suspeitas de que o algoritmo do Spotify deu um empurrão para o sucesso do Velvet Sundown, pondo músicas do grupo em playlists oficiais da plataforma, no fim do dia sobrevivem os bons. Em 2023, uma banda de k-pop chamada Mave, com quatro garotas virtuais, lançou um EP e, depois, sumiu. A razão seria o retorno baixo, especialmente num nicho competitivo no qual os shows com pessoas de carne e osso são fonte imensa de renda. Há ainda os que comem pelas beiradas, como o produtor misterioso Ghostwriter, que usa uma roupa de fantasma e viralizou nas redes com músicas entoadas por vozes “roubadas” de cantores reais como Drake e The Weeknd — sem autorização. Ele até tentou concorrer ao Grammy, dizendo que suas canções são originais, mas foi barrado no baile. Plataformas de streaming ainda engatinham ao deixar claro se há IA nas faixas disponíveis — a Deezer, por exemplo, adotou o uso de um selo alertando os ouvintes. As máquinas sonoras vieram para ficar — mas terão de jogar limpo para se fazerem ouvir.
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2025, edição nº 2953