‘Bob Dylan é puro rock and roll’, diz autor de biografia sobre o músico
Biografia 'Dylan Elétrico: do Folk ao Rock', de Elijah Wald, inspirou o filme 'Um Completo Desconhecido'

Indicado a oito Oscars, o filme Um Completo Desconhecido, com Timothée Chalamet, foi inspirado no livro Dylan Elétrico: do Folk ao Rock, do autor Elijah Wald. A obra, lançada alguns anos atrás nos Estados Unidos, chega agora ao Brasil em português pela editora Tordesilhas, selo do Grupo Editorial Alta Books (320 páginas. 74,90 reais).
Em vez de contar toda a história de Bob Dylan, o livro foca apenas no início da carreira do músico, culminando com o show em 1965 no festival de Newport, quando o músico desafiou os puristas e eletrificou sua música tocando guitarra em show de folk. Em entrevista a VEJA, o autor comentou sobre a influência de Dylan no rock e a importância para a música pop nos anos seguintes, culminando com o prêmio Nobel de Literatura, em 2016. O próprio pai de Wald, George Wald, já venceu um Nobel, em 1967, de fisiologia e medicina.
Ao longo das páginas, o autor aprofunda os detalhes do icônico show no qual Dylan subiu ao palco acompanhado por uma banda com guitarras e teclados elétricos, quebrando o paradigma da época que ligava a música folk aos instrumentos tradicionais como o violão. A performance, hoje considerada um marco da transição do folk para o folk-rock e o rock moderno, fez a plateia se dividir em dança, choro, aplausos, vaias e até ataques de raiva. Confira a seguir os melhores trechos:
O que achou da adaptação do seu livro Dylan Elétrico: do Folk ao Rock para os cinemas? Eles fizeram um ótimo trabalho. No filme, eles inventaram muitas coisas que não aconteceram de verdade, mas inventaram de uma forma muito autêntica. Por exemplo, Bob Dylan e Pete Seeger, os personagens principais do filme, não estavam realmente nos mesmos lugares com muita frequência. O filme os transformou em protagonistas colocando-os nos mesmos lugares. Mas isso é fictício. Os personagens, no entanto, são muito fiéis a quem Pete Seeger e Bob Dylan foram na vida real. No filme, há uma cena em que Bob Dylan visita Woody Guthrie no hospital e Pete Seeger o leva para a sua casa. Isso não aconteceu, mas é algo que, definitivamente, Pete Seeger poderia ter feito naquela situação. O filme pode até não ser factualmente correto, mas, como arte, é poeticamente correto.
O que achou da atuação de Edward Norton e Timothée Chalamet como Pete Seeger e Bob Dylan em Um Completo Desconhecido? Eu já estive pessoalmente com Pete Seeger muitas vezes e Ed Norton está perfeito. Cada gesto, cada expressão, cada inflexão de voz soa exatamente como Pete Seeger. Já Chalamet não é isso. Ele não tentou imitar Dylan. Ele canta muito parecido e toca guitarra exatamente igual, mas a atuação dele como ator é de um personagem que se encaixa na história de Dylan, mas não é uma imitação de Dylan. Eu gostei. Acho que ficaria bobo se ele saísse por aí fazendo imitação de Dylan.
O que significou para o rock o fato de Bob Dylan assumir a guitarra elétrica no festival de Newport? Na Inglaterra não significou muito, já que o rock and roll inglês não fazia distinção entre folk e jazz. Nos Estados Unidos, se você fosse fã de rock naquela época, não ouviria Woody Guthrie, mas, na Inglaterra, havia bandas de skiffle que tocavam rock e Guthrie. Então, pessoas como Keith Richards e Mick Jagger, ouviam álbuns do Ramblin’ Jack Elliott e tocavam suas músicas. Quando falam sobre folk-rock para mim, eu acho o termo meio sem noção, porque os Byrds já faziam isso. Eles soavam como Peter, Paul & Mary, mas com guitarras elétricas. O que Bob Dylan estava fazendo, no entanto, não tinha nada de folk. Ele estava tocando hard rock. Ele estava soando mais pesado que os Beatles. No mesmo mês que ele toca em Newport, os Rolling Stones lançaram Satisfaction, cuja letra é uma imitação absoluta de Dylan. Ele não está misturando folk e rock. Ele está observando o que está acontecendo no rock e dizendo: “eu consigo fazer isso”. Dylan teve uma banda de rock na adolescência e sempre foi um cara do rock and roll. Apenas por alguns anos ele tocou violão. Highway 61 Revisited é puro rock and roll.

Qual foi a reação das bandas britânicas quando conheceram Bob Dylan? The Animals, por exemplo, aprendeu a tocar House of the Rising Sun após ouvir Bob Dylan. Os ingleses já estavam bastante conscientes do que Dylan estava fazendo. Em 1965, Donovan também estava em Newport, por exemplo.
As vaias em Newport ajudaram a criar um mito em torno de Bob Dylan? Muita gente achou que Bob Dylan estava se vendendo quando passou a tocar guitarra elétrica, que ele só estava fazendo aquilo por dinheiro e para se tornar uma estrela. Bob Dylan sempre quis ser Elvis Presley e quando veio as vaias, ele corajosamente seguiu seu próprio caminho. Curiosamente, após ele mudar para o som elétrico, vendeu mais discos do que jamais havia vendido como acústico. Ele pode até ter perdido um pouco de fãs, mas ganhou muito mais.
A razão das vaias foi porque Bob Dylan tocou rock? Havia muita gente em Newport naquele fim de semana que foi lá especificamente para ouvir Bob Dylan. Elas não estavam interessadas em mais nada do que estavam acontecendo. Muitos vaiaram Dylan porque ele cantou só três músicas e foi embora. Elas teriam ficado felizes em ter um festival inteiro só com Bob Dylan. Havia outro grupo que achava que ele estava destruindo o festival ao tocar guitarra. Ambos os grupos estavam certos. Bob Dylan fez a apresentação mais emocionante de sua carreira e essa mesma apresentação destruiu o festival.
Esse tipo de acusação, de que o artista se vendeu para o sistema, continua acontecendo até hoje com, por exemplo, grupos de punk que assinam contrato com grandes gravadoras. Por que isso acontece? Isso acontece o tempo todo e em todo lugar. No Brasil, quando Caetano Veloso tocou guitarra, disseram que ele estava se vendendo. Antes ele era um artista “de verdade” e agora era um “astro pop”.
Afinal, folk é um ritmo musical? Não. Explicando de maneira simplória, folk é uma sociologia. É um encontro de ritmos africanos com o europeu. Isso vale também para o tango e para a bossa nova. No sentido amplo, a música americana, ou seja, tudo o que foi feito do Canadá à Argentina até ao Chile, é um encontro do europeu com o africano. Vale para o jazz, para o samba e, com certeza, também para o rock e o blues. Não é a mesma coisa, porque cada país teve uma influência de diferentes partes da África. Agora, sendo mais técnico, a influência da música brasileira vem muito mais do Congo e de Angola. Nos Estados Unidos, a área rítimica é mais do Senegal e Gâmbia. Obviamente que tudo isso é uma simplificação exagerada.
Em outro livro seu: How the Beatles Destroyed Rock n Roll: An Alternative History of American Popular Music, você fez uma provocação sobre como a música que ouvimos hoje é analisada por diferentes filtros ao longo dos anos. No passado, Beatles era considerado uma música ruim pelos entendidos. Hoje, é boa. Bob Dylan, em algum momento, foi avaliado por esse prisma? Bob Dylan sempre teve gente que amava suas músicas desde o início. Ele é um caso interessante porque se você perguntar qual é a coisa mais importante sobre Bob Dylan, as pessoas responderão serem suas composições. Eu não discordo disso. Muitos vão dizer que ele era um cantor ruim, o que não é verdade. Sua voz era muito incomum, mas isso abriu caminho para muitas pessoas com vozes incomuns ao redor do mundo. Se Bob Dylan nunca tivesse existido, muitos nunca teriam pensado que poderiam ser cantores.

Bob Dylan ter ganhado um Nobel de Literatura dá esperança para outros músicos também sonharem com o prêmio? Não haverá outro Bob Dylan. Quando ele ganhou o Nobel, muita gente achou que isso era ruim, mas muitos escritores, como Salman Rushdie, disseram ter sido inspirados por Bob Dylan. Ele foi uma inspiração para escritores e para músicos e isso é incomum.
O passado de Dylan é bastante nebuloso. Como foi seu processo de pesquisa sobre o músico? A melhor maneira de pesquisar sobre Bob Dylan é não perguntar nada para ele. Não vou dizer que ele mente em suas respostas, mas ele criou um personagem. Ele deixou sua cidade natal para ser um tipo de personagem. Desde então, ele já interpretou muitos tipos de personagens e não temos ideia de quem ele realmente é, seja lá o que isso signifique. Ele teve um sucesso inacreditável em nos manter longe de sua história real. Quando comecei a pesquisar sobre o livro, eu vi que todos os outros livros sobre Dylan o viam como compositor. Quando foquei no festival de Newport, eu percebi que a escolha dele em eletrificar sua música não teve nada a ver com o fato dele ser compositor. Foi uma escolha sobre quem ele era como músico e intérprete e percebi que não havia nenhuma biografia sobre Dylan que prestasse tanta atenção à composição quanto ao músico e as interpretações de Dylan.
O que sentiu quando descobriu que Bob Dylan havia lido seu livro? O mais empolgante sobre meu livro ter se tornado um filme foi que a ideia veio de Bob Dylan. Ele leu o livro, ligou para o empresário e disse: vocês deveriam adaptar esse livro para o cinema. Esse é o verdadeiro prêmio para mim. Eu nunca imaginei que Dylan pudesse ler meu livro. Eu nunca entrevistei o Dylan. Nem tentei, aliás. Se há um assunto sobre o qual Bob Dylan nunca mais precisa ser questionado é sobre o festival de 1965 em Newport. Obviamente que eu adoraria conhecê-lo. Mas Bob Dylan só conhece as pessoas que ele quer conhecer e, geralmente, ele não se interessa por pessoas que querem falar sobre Bob Dylan. Se algum dia eu conhecer Bob Dylan, eu acho, que será porque escrevi um livro sobre Robert Johnson.