Editorial de O Estado de S. Paulo (8/3/2021)
Em mais uma mostra de que estão dispostos a privilegiar seus interesses pessoais e os de seus familiares sobre o interesse público, alguns deputados, a pretexto de realizar uma revisão da Lei de Improbidade Administrativa, manobram, com o aval do presidente Jair Bolsonaro, para relegitimar a prática do nepotismo.
No âmbito da comissão especial da Câmara que discute a reforma da Lei de Improbidade (8.429/92), o líder do governo, Ricardo Barros (Progressistas-PR), defendeu uma proposta do relator, Carlos Zarattini (PT-SP), para excluir o artigo 11, que caracteriza como improbidade “qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”.
Com base neste dispositivo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem chancelado condenações em casos de contratação de parentes. Em 2008, a Súmula 13 do Supremo Tribunal Federal vedou “a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, (…) para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada”.
A Lei de Improbidade, nascida na esteira dos escândalos de corrupção do governo Collor, foi um marco histórico. Mas, 30 anos depois, vê-se que, no afã de coibir a corrupção, o legislador não distinguiu com o devido apuro dolo, culpa e mera incompetência. A interpretação demasiado ampla do conceito de “improbidade” motivou uma avalanche de denúncias infundadas do Ministério Público, fomentando uma atmosfera de criminalização da atividade política e desestimulando a atuação de muitos administradores honestos.
Com o propósito de punir judicialmente os gestores desonestos e deixar a punição dos incompetentes às urnas, a Câmara criou, em 2018, uma comissão de juristas, coordenada pelo ministro do STJ Mauro Campbell, que resultou no projeto ora em discussão. Mas um substitutivo de autoria de Zarattini acaba com as punições do artigo 11, restando apenas a possibilidade de condenação se o ato resultar em prejuízo financeiro ou enriquecimento ilícito. Assim, diversas condutas, como o nepotismo, deixariam de acarretar sanções de improbidade.
O próprio autor do projeto, Roberto Lucena (Podemos-SP), é contra a mudança. “Eu me sinto contrariado com o fato de que a gente possa, retirando o artigo 11, promover um retrocesso naquilo que já está consolidado”. Segundo Campbell, “a simples supressão do preceito (previsto no artigo) acaba por admitir como ‘lícita’ e, portanto, proba, a conduta de quem viola manifestamente a imparcialidade em concurso público ou de quem pratica ato manifestamente proibido”.
No parecer dos juristas responsáveis pelo projeto inicial, se essa e outras propostas do substitutivo forem mantidas, “inviabiliza-se, na prática, qualquer ação de improbidade administrativa em face de sujeitos que detenham alguma ascendência sobre os órgãos de controle”.
O presidente Jair Bolsonaro tem defendido mudanças drásticas na lei. É emblemático: um levantamento do jornal O Globo apontou que o clã Bolsonaro já empregou 102 pessoas com laços familiares. Nos seus 28 anos de atividade parlamentar, Bolsonaro nomeou 13 parentes em gabinetes da família. Embora o presidente não seja investigado, algumas dessas contratações, nas assessorias de Flávio Bolsonaro (quando deputado estadual) e do vereador Carlos Bolsonaro, são alvos do Ministério Público do Rio, entre outras coisas pela prática de peculato. Como esquecer a famigerada candura de Bolsonaro à época em que flertava com a indicação de seu filho Eduardo Bolsonaro à embaixada de Washington? “Pretendo beneficiar filho meu, sim. Pretendo, se puder, dar filé mignon.”
É para que políticos como Bolsonaro não possam dar filé aos filhos à custa do dinheiro e dos interesses da população, que a Lei de Improbidade pune o nepotismo. Ajustes na lei são necessários. Mas, se a opinião pública e os parlamentares probos não estiverem alertas, os patrimonialistas atávicos podem pôr a perder o esforço da gente honesta deste país.