O passado ensina a quem tem paciência para aprender. Em 1904, o Rio de Janeiro viveu dias de baderna no episódio conhecido como Revolta da Vacina, quando a população se rebelou contra a Lei da Vacinação Obrigatória. O personagem central da confusão foi o médico sanitarista Oswaldo Cruz, que determinou, com o apoio do governo, a vacinação obrigatória contra a varíola.
Hoje, em meio à pandemia de Covid-19, atravessamos uma nova Revolta da Vacina? Sim. E o debate, com antecedentes no movimento geral antivacina, que já existe em vários países, é sobre se a vacinação anti-Covid deve ou não ser obrigatória.
Será que a nova revolta é específica e pontual? Ou seguiria na esteira de outras disputas relacionadas ao tema, como o uso de máscara, do confinamento compulsório, do emprego da hidroxicloroquina? Provavelmente vai se arrastar por um bom tempo.
E quais seriam as conclusões? A primeira é que, social e psicologicamente, a vacinação será importante. A maioria das pessoas vai querer estar vacinada para, ao menos, recuperar a sensação de liberdade. O mesmo sentimento que os curados sentem após se livrar do vírus. Em Brasília já há quem promova jantares e eventos apenas para “covidados” — aqueles que já tiveram Covid e estariam imunizados.
“Economicamente, a vacina será relevante, já que pode ser decisiva para o acesso a lugares públicos”
Economicamente, a vacinação será relevante, já que poderá ser usada como exigência para o acesso a lugares públicos. Municípios podem requerer, em áreas turísticas, que os visitantes comprovem ter sido imunizados. Muitos países já solicitam prova de não contaminação e, no futuro, poderão pedir também o atestado de vacinação, como no caso da febre amarela.
No âmbito trabalhista, a prova de superação ou da imunização poderá vir a ser um pré-requisito para que se volte a frequentar o ambiente de trabalho. A vacinação contra a Covid-19 fará parte do “novo normal”, correndo ao lado da disputa política instalada no país.
O governador João Doria pode vir a consolidar uma liderança política em nível nacional mais robusta, a partir da produção da vacina na capital paulista, o que, no entanto, depende de autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), um órgão federal. Ali, certamente será travado um embate que influencia a disputa em 2022.
Na semana passada, após um ensaio de aproximação entre Doria e o governo federal sobre a vacina chinesa, em produção no Instituto Butantan, o presidente Jair Bolsonaro disse que não negociaria temas envolvendo a Covid-19. E que o governo federal não adotará tal imunizante.
Bolsonaro agiu de forma pragmática, como teria feito Lenin, por exemplo, que disse: “O que ajuda meu adversário me fere, e vice-versa.” Mas deveria ter pensado, também como Lenin, que, para fazer a Revolução Comunista, era preciso ficar “amigo dos inimigos”, isto é, dos banqueiros e milionários que financiaram o movimento na Rússia.
Ambiguidade e pragmatismo devem ser muito bem pesados em política. Ao se afastar de Doria na questão da vacina, Bolsonaro toma um lado. Mas será o lado certo? Doria, por sua vez, sem as compras do governo federal, poderá ter a influência e o alcance da vacina do Butantan limitados.
Publicado em VEJA de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710