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Sonâmbulos indo para o front?

A expressão, referente à Primeira Guerra, foi ressuscitada para hoje

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 3 jun 2024, 16h52 - Publicado em 14 abr 2024, 08h00

No magnífico Os Sonâmbulos: Como Eclodiu a Primeira Guerra Mundial, o historiador australiano Christopher Clark consagrou o uso da designação daqueles que perambulam durante o sono para descrever a maneira fatídica como os países no topo da civilização europeia caminharam rumo à autodestruição. “Os protagonistas de 1914 eram como sonâmbulos, atentos mas incapazes de ver, assombrados por sonhos, mas cegos à realidade do horror que estavam prestes a desencadear sobre o mundo”, escreveu. Seremos nós os sonâmbulos da era contemporânea? A pergunta ressurgiu diante dos quatro grandes focos de conflito em potencial ou em desenvolvimento no momento. Primeiro, e mais premente, um conflito que envolva o Irã e se alastre catastroficamente pelo Oriente Médio. Segundo, o risco de que a guerra movida pela Rússia contra a Ucrânia incentive o império de Putin a avançar sobre outros países da “esfera russa”. Terceiro, e talvez o mais inquietante, a manobra que todos antecipam para a China se apossar de Taiwan. Quarto, a caixa-preta do que vai pela cabeça do pequeno imperador vermelho da Coreia do Norte, Kim Jong-un. Esses são os “desconhecidos conhecidos”, conflitos que, apesar das consequências imprevisíveis, estão desenhados no teatro geopolítico mundial.

Existem ainda os “desconhecidos desconhecidos”, os que “não sabemos que não sabemos”, na definição de Donald Rumsfeld, o secretário da Defesa dos Estados Unidos na época da invasão do Iraque, em 2003. Rumsfeld, por exemplo, não sabia que não sabia do risco de radicalização no Iraque que alimentaria diferentes correntes do islamismo fundamentalista, propiciaria uma vitória ao Irã com a ascensão xiita decorrente da queda do regime sunita de Saddam Hussein e redundaria no armamento e no financiamento de aliados iranianos, como o Hamas. Como lei das consequências imprevisíveis, a guerra de Rumsfeld e de George Bush filho não poderia ser mais perfeita.

“Os atuais focos de instabilidade têm pelo menos um ator dotado de armamento nuclear”

Note-se que os atuais focos de alta instabilidade têm todos pelo menos um ator dotado de armamento nuclear: Rússia, China, Coreia do Norte, Israel e, muito proximamente, Irã. O expansionismo de Putin virou uma ameaça concreta e nada distante, por mais que pareça difícil de engolir para os europeus acostumados a um longo período de paz, garantida pelos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial e alimentada pelas políticas que criaram estados de bem-estar social, com níveis de prosperidade jamais vistos na história humana. “Nós transitamos do mundo do pós-­guer­ra para o mundo do pré-guerra”, definiu recentemente o ministro da Defesa do Reino Unido, Grant Shapps, uma das vozes que procuram alertar os “sonâmbulos” sobre perigos que pareciam inconcebíveis até recentemente.

Christopher Clark lembra em seu livro que até Freud se animou com a guerra desencadeada depois do assassinato do herdeiro da monarquia dual austro-húngara, o arquiduque Francisco Ferdinando. “Pela primeira vez em trinta anos, eu me sinto austríaco e quero dar uma nova chance a esse império não muito auspicioso. Toda a minha libido está dedicada à Áustria-­Hungria.” O entusiasmo logo acabou, a libido murchou e, 24 anos depois, Freud teve de fugir de Viena, na Áustria anexada pelos nazistas. A marcha do que ninguém sabia que não sabia já havia irreversivelmente começado.

Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888

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