Quem ganha e quem perde com o vazamento de segredos da guerra
Todos têm algo a perder: reputação, informações vitais, poder e agentes infiltrados pelos americanos em serviços secretos russos
Os segredos do Pentágono vazados em plataformas sociais mostram, acima de tudo, dois fatos: os americanos sabem tudo, até os segredos sussurrados em recantos obscuros de qualquer palácio do mundo, mas não sabem mantê-los sob as sete chaves de sigilo que informações vitais exigem.
A revelação dos documentos sigilosos causa um estrago tremendo para as principais partes envolvidas, Estados Unidos, Rússia e Ucrânia.
Para os russos, são profundamente humilhantes, em especial por mostrar que a sua estrutura militar está infiltrada a ponto de dar aos americanos – e, portanto, aos ucranianos – todos os horários e meios usados em ataques de artilharia antes que acontecessem. A agência Sputnik, que é a voz do Kremlin, deu uma disfarçada, dizendo que a coisa toda não era digna de crédito, um modo de abrandar a humilhação.
Para os americanos, expõem a incapacidade de guardar segredos vitais, já demonstrada pelos grandes vazamentos de Julian Assange (preso na Inglaterra, sem ter nunca vazado nada sobre os russos), sua colaboradora Chelsea Manning (que virou mulher trans durante a pena de prisão e recebeu o perdão presidencial no apagar das luzes de Barack Obama) e Edward Snowden (morando na Rússia, sem nunca ter revelado nada sobre os seus atuais anfitriões e agora compatriotas). Isso para não voltarmos mais um pouco na história e chegarmos aos Papéis do Pentágono, revelados durante a Guerra do Vietnã.
As informações sigilosas também revelam os métodos da inteligência americana e, potencialmente, os informantes infiltrados que passavam as informações para elas. Nesse exato momento, muitos deles podem estar embarcando para a viagem sem volta que o Kremlin reserva aos que o traem.
Perder informantes no meio de uma guerra é um golpe tremendo – e quem mais vai sentir é a Ucrânia.
Os documentos vazados descrevem em detalhes a avaliação feita pela cúpula militar ucraniana sobre a situação nas frentes de combate, quantidade de armamento (sempre faltando) e de outros recursos, sistemas de defesa aérea e posições na linha de frente. Expõe também os problemas profundos da força aérea ucraniana, praticamente grudada no solo por impossibilidade de confrontar os russos (estes, com falhas inacreditáveis, deveriam ter desde o começo da guerra, o domínio do ar, mas não conseguem).
As revelações explicam o interesse dos ucranianos em também desacreditar os segredos vazados. Mikhailo Podoliak, um dos principais assessores de Volodimir Zelenski, disse que tudo é uma “jogada típica” dos serviços secretos russos.
“O objetivo do ‘vazamento’ de dados secretos é óbvio: desviar atenções, lançar dúvidas e suspeitas mútuas, semear discórdia”, afirmou.
Isso é exatamente o que o vazamento está fazendo. Antes mesmo que esse avassalador número de informações secretas – cerca de 100 páginas de documentos – aparecesse no Telegram e numa obscura plataforma de chats usada principalmente pela turma dos games, a Ucrânia já relutava em partilhar informações militares com os Estados Unidos.
Motivo número um: medo de vazamento – agora plenamente justificado. Número dois: qualquer militar da face da Terra não gosta de dividir segredos em circunstância alguma, muito menos durante uma guerra. Número três: os serviços de inteligência ucranianos se originaram justamente da escola russa de desinformação e infinitas camadas de sigilo.
“Os Estados Unidos têm uma compreensão mais clara das operações militares russas do que do planejamento ucraniano”, comparou o New York Times. Alguma dúvida de que agora os ucranianos tornar-se-ão mais fechados ainda?
Uma das informações que tanto russos quanto ucranianos sempre se esforçam para manter em sigilo total é o número de baixas em cada campo. Os documentos entram em detalhe sobre a informação que todo mundo quer saber. Do lado dos russos, o número de baixas é calculado entre 189,5 mil e 223 mil, dos quais 43 mil mortos – um número gigantesco, que bate com os cálculos mais realistas de outros especialistas. As baixas ucranianas são de 124,5 mil a 131 mil, entre os quais 17,5 mil mortos em combate.
Quem vazou os documentos? Centenas e até milhares de pessoas credenciadas poderiam ter acesso a eles, diz o Times. A porta agora está em “lockdown”, segundo o Pentágono, para evitar novos constrangimentos. As informações secretas foram preparadas por múltiplas agências de inteligência, incluindo a CIA e a Agência de Segurança Nacional, com base em informações dadas por agentes infiltrados e pelo vasto sistema de escuta eletrônica capaz de capturar praticamente tudo que não esteja protegido pelos mais altos níveis de despistamento. O destinatário era o general Mark Milley, chefe do Estado Maior das Forças Armadas, posto máximo da hierarquia militar.
O momento do vazamento é especialmente sensível porque a Ucrânia está prestes a lançar uma ofensiva –com “nove brigadas das Forças Armadas Ucranianas preparadas e equipadas pelos Estados Unidos e a Otan”, entregam os documentos – para tentar virar a dinâmica da guerra, atualmente quase que empatada, com forças equilibradas em lugares menos estratégicos como Bakhmut.
Obviamente, os russos têm seus próprios agentes infiltrados na Ucrânia, um campo vasto, considerando-se que uma pequena parte da população é de russos étnicos que preferem se alinhar com Moscou.
Os serviços russos são mais do que agências de inteligência. É neles que está fincada a mais importante base de sustentação de Vladimir Putin que, famosamente, foi da KGB e criou com seus aliados mais próximos o capítulo seguinte. Existe até uma palavra em especial para designar o tipo de gente que integra a FSB e o GRU, os dois principais serviços: silovik.
Qualquer coisa que atinja os serviços secretos atinge Putin diretamente. É contra esse fato que devem ser medidos os apuros que os americanos estão passando no momento. E é isso que certamente está tirando o sono de qualquer silovik, imaginando a famosa batida na porta que anuncia a desgraça.
Quem mais Putin vai culpar pela penetração sem precedentes em círculos criados para ser inexpugnáveis? E quem, mais do que Putin, está sibilando de raiva e vergonha?