Prigozhin “pode levar a cabeça do presidente ucraniano para o Kremlin”
Essa é a última especulação, depois que todas as loucuras se tornaram possíveis com a reunião confirmada entre Putin e o chefe mercenário
Primeiro, era um traidor. Depois, tudo bem ser magnânimo e perdoá-lo. Por último, uma reunião executiva, quase uma conferência de cúpula, que pôs frente a frente Vladimir Putin e Ievgueni Prigozhin, mais 37 comandantes do Grupo Wagner.
Foi uma informação tão estarrecedora, confirmada pelo porta-voz oficial Dmitri Peskov como se fosse uma coisa normal, que elevou a grau máximo as teorias conspiratórias, que já não são poucas.
Uma delas foi delineada por Dmitri Muratov. Atenção o jornalista e editor não é nenhum conspiracionista, dos muitos que já proliferam nos espaços digitais diante das completas contradições desencadeadas a partir da rebelião de 23 de junho de Prigozhin. Muratov teve que ir para o exílio, depois de tentar manter viva e independente a Novaya Gazeta, um trabalho heroico pelo qual ganhou o Nobel da Paz de 2021.
“Acho que Prigozhin pode não pedir perdão implorando ‘Me deixe voltar’”, disse o editor. “Ele pode cometer uma grande atrocidade em nome da Rússia. Pode tentar organizar uma tentativa de assassinato contra Zelensky e levar a cabeça do presidente ucraniano para o Kremlin”.
“Ele tem que fazer alguma coisa para tirar o gosto do que Putin chamou de ‘punhalada nas costas da Rússia’”.
Ou será que o gosto não é tão amargo assim?
O furo sobre a reunião de Putin e Prigozhin em 29 de junho, menos de uma semana depois do golpe frustrado, foi dado pelo jornal Libération e confirmado ontem por Peskov, com detalhes de cair o queixo. Por exemplo, a reunião durou três horas, período durante o qual “os comandantes apresentaram eles mesmos sua versão dos fatos. Insistiram que eram partidários fervorosos do chefe de Estado e comandante-chefe e que estavam prontos a continuar a lutar pela pátria”.
Enquanto isso, a mansão de Prigozhin era invadida e as fotos dele com disfarces ridículos eram divulgadas para a imprensa por um canal próximo aos serviços de inteligência — um possível indício de que existe uma luta interna dentro do regime russo sobre qual deve ser o destino do chefe mercenário e sua força, na Ucrânia e em países africanos.
A confusão é gigantesca, inclusive entre os próprios combatentes do Wagner. O jornal online Moscou Times entrevistou alguns deles, sem, obviamente, revelar suas verdadeiras identidades.
“Meus companheiros e eu lutamos pela pátria, não por um idiota e suas ambições pessoais”, disse um deles, chamado de Roman, combatente de 35 anos.
“Nossos companheiros abriram uns contra os outros, uma grande quantidade de equipamentos militares foi destruída e as pessoas estão assustadas, para não falar no prejuízo à reputação da Rússia no cenário geopolítico”, avaliou.
Outro, chamado de Vlad, de 29 anos, disse que “nunca apontaria armas para nosso próprio povo”.
Malik discorda. Ele está em São Petersburgo, recuperando-se de ferimentos nos braços sofridos em Bakhmut, e continua a usar roupas que o identificam claramente como wagnerista. “Não é proibido e eu continuo a ser um patriota”.
“Rostov inteira estava do lado de Prigozhin e do Wagner. Ele fala e faz a coisa certa e já fez muito pelo país, enquanto Shoigu não fez nada que preste”.
O criticado é o ministro da Defesa, Serguei Shoigu, um dos integrantes do alto escalão contra os quais Prigozhin disse que se insurgiu.
As opiniões refletem o que talvez seja dito — ou apenas pensado — pelos russos em geral, um enigma duro de decifrar: de 70% a 80% das pessoas que pesquisadores tentam entrevistar, recusaram-se a falar qualquer coisa — com razão, aliás. Por isso deve ser vista com restrições uma pesquisa como a do instituto Levada, que mostrou uma queda de 50% para menos de 20% nas opiniões positivas sobre Prigozhin depois da rebelião.
Como reagiriam os russos depois de ver que o homem a quem Putin chamou de traidor é recebido no Kremlin e tratado como um interlocutor não só válido, como respeitável?
Provavelmente, ficando fora de um assunto que, como o resto do mundo, não compreendem.
Prigozhin sempre foi uma cria de Putin, um braço auxiliar criado em conjunto com o serviço militar de inteligência para agir no exterior fazendo o que as forças regulares não podiam — e ganhando um mundo de dinheiro com petróleo, ouro, diamantes, madeira e outros recursos dos países onde interferiam. Ninguém pode imaginar que o dinheiro não entrou na caixinha coletiva.
Nos últimos vídeos antes da rebelião, Prigozhin foi ficando mais agressivo e chegou a fazer ironias como o “vovô idiota” — vovô é como muitos chamam Putin.
À medida em que fica mais clara a armação sobre a intervenção do presidente da Belarus, Alexander Lukashenko, e o acordo para que Prigozhin e o Wagner fossem para lá, enquanto continuam a circular pela Rússia, a única certeza é que nada é o que parece.
Putin “ouviu as explicações dos comandantes” e “ofereceu opções” sobre como serão usados futuramente, disse Peskov. Quase que um remanejamento de pessoal, como numa empresa normal.
Está aí, obviamente, o grande complicador — o que abre caminho a especulações sobre a cabeça literalmente a prêmio de Volodymyr Zelensky. A maskirovka, palavra tão russa para designar operações feitas para enganar o inimigo sobre suas verdadeiras intenções, continua a girar.
E a tornar mais interessante uma reunião da Otan onde já estava tudo decidido — Suécia está dentro, Ucrânia continua fora, com com múltiplas garantias —, à qual Zelensky fará um de seus apelos emotivos. A Rússia que existia quando a reunião em Vilnius foi planejada era uma, a que existe agora que a conferência está sendo realizada é outra — mas poucos sabem dizer exatamente o quê.