Por que não fazer o Plano Real?
Com os dois pés no abismo, a Argentina prefere soluções mágicas
Como sempre acontece em países sem estabilidade, o assunto mais falado na Argentina — fora o funcionário estadual que se enredou em ostentação explícita com uma modelo erótica num iate chamado Bandido — é o day after ao primeiro turno da eleição. O desmoronamento é ligado, com ou sem razão, a uma boa colocação do candidato Javier Milei e sua promessa de uma dolarização sem que haja dólares para fazê-la, embora o economista que ascendeu de participações exóticas em debates de TV ao primeiro lugar nas pesquisas diga ser a coisa mais fácil das várias tarefas que enfrentará se eleito.
Sempre tão criativos em qualificar seus múltiplos tormentos, analistas argentinos falam até em uma “saída à Afeganistão”, um caos comparável ao que os americanos colocaram para si mesmos quando resolveram deixar o país asiático. O “Afeganistão argentino” teria elementos já conhecidos: Milei ganha a primeira colocação, o dólar a 1 000 pesos passa a ser até uma lembrança boa, a inflação dispara muito além dos 140% anuais e Alberto Fernández, o presidente que vaga como um melancólico fantasma pela Casa Rosada, tem que entregar o governo antecipadamente. Já aconteceu antes, com um político de jaez infinitamente superior, Raúl Alfonsín, que em 1989 antecipou em cinco meses a transmissão do mandato presidencial ao eleito Carlos Menem. Alfonsín estava destroçado pelo fracasso do Plano Austral e “la hiper”, a inflação descontrolada. Os respectivos naufrágios, do presidente mais digno que a Argentina teve em muito tempo e do malfadado Austral, foram devidamente levados em conta num Brasil em que o índice anual de aumento de preços bateu em 3 000%. Por que a Argentina não tenta reproduzir o sucesso do Plano Real? Por que tantos argentinos acreditam em soluções mágicas como a dolarização e não em outro mito do bem, o da URV, que se transformou, em 1994, no real estável?
“Sempre tão criativos em seus tormentos, analistas falam até em uma ‘saída à Afeganistão’ ”
No Brasil, “o nome da mágica é Fernando Henrique Cardoso”, disse um dos economistas envolvidos no Plano Real, Edmar Bacha, ao ressaltar “a união sadia da técnica com a política”. Na Argentina, o mago Milei chegaria ao governo com poucos congressistas e currículo de guru de sexo tântrico, “pai” de cães que diz ter mandado clonar e participação, de malha preta e amarela, num encontro de cosplay, encarnando um personagem criado por ele mesmo, o Capitão Ancap, ou anarcocapitalista. Sem contar que chamou o peso de “excremento”. Que tal um “Plano Excremento”?
As alternativas são Sergio Massa, o ministro da Economia que governa o país e concorre à Presidência, uma insanidade até para os padrões argentinos, ou Patricia Bullrich, da oposição convencional — embora a briguenta filha da elite tenha pouco de “convencional”. Seu ministro da Economia seria Carlos Melconian, autor de um plano de estabilidade que “muda fundamentalmente como a economia funciona na Argentina”. Batendo um calhamaço com os detalhes do plano na mesa numa entrevista, ele lamentou: “Daria muita raiva jogar tudo isso na m****”. Esse é o economista racional e equilibrado.
Existem em algum plano superior deuses que protegem a Argentina. Nove calotes na dívida? Deuses. Milei? Massa? Iate Bandido sem levante popular? Deuses. Devem estar fazendo hora extra.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864