Parece filme, mas aconteceu: até hoje vivemos ecos do Dia D
O mitológico desembarque das tropas aliadas na França, há 75 anos, não apenas selou a derrota da Alemanha como moldou a história ao barrar expansão da URSS
No dia 5 de junho de 1944, o genial estrategista americano Dwight Eisenhower comandou o contra-ataque em Pas de Calais que varreu espetacularmente a resistência dos alemães, embora eles estivessem preparados para o desembarque inimigo.
Tudo o que foi escrito acima está errado.
O desembarque começou no dia 6, adiado por causa do mau tempo. Ficou conhecido como Dia D exatamente porque, em mais de um ano de planejamento, era impossível cravar o dia em que aconteceria por causa da imprevisibilidade meteorológica.
Foi na costa da Normandia, com 80 quilômetros de praias divididos em cinco setores. Os nomes operacionais entraram para a história e para os antológicos 27 minutos de reconstituição filmados por Steven Spielberg em O Resgate do Soldado Ryan. Utah e Omaha a cargo dos americanos; Gold, Juno e Sword, de britânicos e canadenses.
Apesar das condições perfeitas para deixar os alemães em posição de total vantagem defensiva, do alto das falésias onde os atacantes eram patinhos na lagoa, eles haviam sido enganados sobre o local do desembarque por uma operação de inteligência na qual um desconhecido agente duplo espanhol teve papel fundamental.
E Dwight D. Eisenhower não foi nenhum gênio estratégico. Não era agressivo, não tinha o espírito de liderança dos grandes generais da história e não inspirava a tropa. Para complicar, tinha sob seu comando homens exatamente assim, como Omar Bradley ou o espetacularmente ambicioso e narcisista George Patton.
Um rápido passeio pela trajetória de Eisenhower, o comandante supremo das forças aliadas que depois seria presidente dos Estados Unidos, e do agente duplo espanhol, Juan Pujol García, que morreria no semianonimato na Venezuela, nos ajuda a relembrar os feitos portentosos do Dia D.
Para lembrar: por causa da sonoridade, a mesma em português e inglês (D-Day), foi este o nome que ficou na memória coletiva.
O conjunto é chamado, militarmente, de Operação Overlord (em português, supremo ou soberano não transmitem a mesma ideia) e envolveu todas as etapas da invasão, ou batalha, da Normandia.
O desembarque em si foi a Operação Netuno.
O codinome da obra prima de contrainformação, destinada a convencer os alemães sobre um falso ponto zero do desembarque com a criação de exércitos imaginários, era Operação Fortitude. Os estratagemas para esconder os rastos dos preparativos para a invasão pela Normandia fizeram parte da Operação Guarda-costas.
GRANDE CRUZADA
O tempo, como sempre, foi o mais volúvel dos elementos.
“Eles não têm o direito de nos dar um tempo como esse”, reclamou Winston Churchill por causa da famosa e quase eterna chuva da Normandia, quando Eisenhower e o filho, John, foram visitá-lo no Gabinete de Guerra.
Quem mais, se não Churchill, desafiaria diretamente os humores dos deuses do tempo?
Os dois se davam bem, apesar de brigas furiosas. Filho de duque, nascido em Blenheim, um palácio maior do que o da rainha (na época, rei), e já firmemente instalado na posição de estadista maior do que a vida, Churchill tinha que cortejar e adular o americano de estilo simplório.
Ike, apelido do soldadão de origem alemã (Eisenhauer), tinha nascido num casebre atrás da linha de trem no Texas e sido criado no Kansas, numa família praticamente miserável. A mãe era menonita, uma seita protestante proveniente da Alemanha, austera e pacifista.
Churchill era um aristocrata até o último fio de seda das ceroulas cor de rosa, mas não esnobe. Como Stálin, fazia de tudo para que os americanos entrassem logo em guerra na Europa.
Mas o senhor do tempo certo era o general americano. Convencido por seu meteorologista que havia sido aberta uma janela de oportunidade de alguns dias, confirmou a invasão as 21,45 horas de 5 de junho.
Em seguida, foi escrever a mensagem que ficou famosa, dirigindo-se aos homens que estava mandando para a guerra, chamada sem hesitação de “a Grande Cruzada”. Os americanos, na maioria jovens na faixa dos 21 anos, pela primeira vez.
As expectativas eram muito claras: “Os olhos do mundo estão em vocês. As esperanças e as preces de todos os povos que amam a liberdade marcham com vocês.”Os objetivos, mais grandiosos ainda: “Destruir a máquina de guerra alemã, eliminar a tirania nazista sobre os povos oprimidos da Europa e garantir para nós um mundo livre.”
“Não aceitaremos nada menos do que a vitória total.”
No bolso da jaqueta, Eisenhower deixou uma outra mensagem, escrita a mão, com rasuras e acréscimos, para o famoso “se der *****”.
“Nossos desembarques na área de Cherbourg-Havre não conseguiram firmar uma posição satisfatória e eu retirei as tropas. Minha decisão de atacar nesse momento e lugar foi baseada na melhor informação disponível. As tropas, a Força Aérea e a Marinha fizeram tudo o que o valor e a devoção ao dever demandavam.”
“Se alguma culpa ou erro forem atribuídos à tentativa, serão somente meus.”
Provavelmente não existe nenhuma pessoa no mundo ocidental que não se pergunte qual líder político ou militar dos tempos atuais chamaria para si dessa maneira uma responsabilidade desse tamanho.
Com sua ordem, o general Eisenhower pôs em ação, somente no Dia D, 6 800 embarcações, 11 500 aeronaves, e 156 mil homens.
No total, mais de um milhão de tropas participaram da Batalha da Normandia, aumentando em seguida no complicado avanço em direção à Alemanha.
Se fracassassem, historiadores calculam que mesmo a guerra já tendo sido resolvida pela monumental resistência dos soviéticos, que enfrentavam simultaneamente os invasores nazistas e a brutal desconfiança e inclemência de Stálin com seus próprios militares, levaria pelo menos mais um ano para tirar os alemães da Europa Ocidental.
A esferas de influências já estavam decididas, mas quem garantiria que Stálin, o mestre de todos os engodos, respeitaria os acordos e não iria tomar espumante da Geórgia, sua terra natal, em Paris?
CODINOME GARBO
No mundo anônimo da inteligência, Juan Pujol García, catalão de Barcelona e provavelmente um caso único no mundo de espião freelance, fazia de tudo para que o bilhete amassado no bolso de Eisenhower não precisasse vir a ser divulgado.
Ele tinha uma motivação básica: lutar contra o fascismo e o comunismo, as duas variantes que havia conhecido durante a Guerra Civil na Espanha em dose suficiente para ficar inoculado para sempre.
Antes mesmo de começar o conflito, a fábrica de tintas de seu pai havia sido tomada pelos trabalhadores denominados revolucionários. Depois, foi preso por resistir ao serviço militar do lado republicano, trabalhou numa granja colocada sob o impossível regime coletivo, passou para o lado nacionalista e acabou preso por defender a monarquia.
Quando começou a Segunda Guerra, ofereceu-se como espião para os ingleses. Diante do desinteresse que o amador provocou, contatou a embaixada alemã em Madri, fingiu ser um operador capacitado e virou agente por conta própria. Instalado em Portugal, onde conseguiu um visto para o Brasil, inventava operações navais fictícias para enganar os alemães.
Acabou chamando a atenção do serviço de inteligência britânico e foi morar na Inglaterra, onde ganhou o codinome de “Garbo” pela extraordinária capacidade de representar realidades inexistentes.
Enquanto os britânicos dizimavam os espiões reais a serviço da Alemanha, através da cooptação e até de execuções sumárias, “Garbo” criava agentes fictícios.
Inventou uma rede de nada menos que 27 informantes, com nomes e personalidades independentes. Quando os alemães desconfiaram de um deles, Garbo atribuiu a falha de “seu” agente a uma doença. Acabou matando o personagem. Mas conseguiu que a Alemanha pagasse uma pensão à sua viúva.
A quebra do segredo da Enigma, a máquina alemã de criptografia, pelos gênios de Bletchley, dos quais o mais conhecido se tornou o matemático Alan Turing, dava aos britânicos uma enorme vantagem.
Mas Garbo tinha que mostrar serviço para não despertar suspeitas. Chegava a mandar detalhes de operações verdadeiras por correio. A correspondência era interceptada pela inteligência britânica e só enviada quando já era tarde demais.
Mas os fatos, reais, impressionavam os operadores alemães. Garbo chegou a ganhar a Cruz de Ferro, a condecoração com a cruz templária que remonta ao exército prussiano.
Para convencer os alemães de que o desembarque seria em Pas de Calais, o agente duplo inventou uma enorme quantidade de informações falsas relatando tropas, equipamentos e meios de transporte em bases situadas numa área do litoral da Inglaterra que dava a entender para onde se concentraria a invasão aliada. Seu exército imaginário atingiu o inacreditável número de um milhão de tropas.
A Operação Guarda-costas envolveu todos os serviços de inteligência, vazamentos controlados, simulação de tráfego de comunicações e até o rei George VI. O pai da rainha Elizabeth visitou uma das bases criadas só para desviar as atenções dos alemães.
Foi tão convincente que, mesmo depois de lançado o desembarque na Normandia, nem a genial Raposa do Deserto, o general Erwin Rommel, já devidamente expulso do deserto do Norte da África, conseguiu convencer o comandante-chefe da frente ocidental, Gerd von Rundstedt, a desviar tropas para reforçar o local real da invasão.
Rommel se suicidou inalando cianeto de potássio quatro meses depois do desembarque na Normandia, uma saída “digna” para a acusação de participar do complô para matar Hitler sem afetar sua aura de heroísmo.
O suicídio de Hitler no bunker de Berlim demorou mais onze meses.
SOLDADOS FANÁTICOS
Todo mundo ganha a guerra, principalmente depois da vitória: infantaria, blindados, paraquedistas, comandantes narcisistas, sapadores, engenharia, espiões. Sem falar no bravo pessoal da logística.
O grande feito de Dwight Eisenhower foi orquestrar a extraordinária e inacreditavelmente variada quantidade de talentos (e de defeitos também) colocada pela história sob suas ordens.
“Vou comandar o negócio todo”, disse ele à mulher, Mamie, quando foi informado de que a Operação Overlord estava nas mãos dele, um general de três estrelas criado os cafundós do Kansas.
Só de comandantes com a patente de marechal-de-campo a Grã-Bretanha tinha cinco. E se alguém acha que a ameaça nazista e a maior guerra de todos os tempos impedia os militares de vigiar com lupa a hierarquia é porque não conhece a categoria.
Apesar do jeitão de americano simples, direto e otimista, Eisenhower tinha habilidade política – de que outra forma chegaria a presidente dos Estados Unidos?
Como não gostava de demitir gente, dizer “não” a George Patton e fazer outros trabalhos sujos inerentes ao poder, deixava seu chefe de gabinete, o implacável e boca suja general Walter Bedell Smith, enfiar a mão na massa.
“Eisenhower disse uma vez que todo comandante precisa de um filho da p*** para protegê-lo e que o cara dura Bedell Smith era o seu”, escreveu o historiador Carlo D’Este numa das biografias de Ike.
Toda a monumental máquina de guerra colocada sob o comando de Eisenhower estava, exatamente, como nos filmes, a poucos minutos de vencer ou afundar naqueles momentos decisivos do Dia D.
“Eu sabia que não era uma batalha comum”, lembrou ao Telegraph o marechal-de-campo Dwin Bramall. Hoje com 95 anos, era um tenente “verde”, sem experiência de combate quando desembarcou na Normandia, com “trinta olhos grudados na nuca”, o de seu pelotão.
“Aquilo ia decidir o resultado final da guerra. Se fracassasse, a guerra poderia durar mais vários anos.”
“Os alemães não eram apenas soldados muito bons. Também eram fanáticos. Sabiam que se perdesse aquela batalha seria o fim, não apenas da guerra, mas do mundo deles”, disse o veterano sobre o desembarque mais complicado da história militar de todos os tempos.
Historiadores sérios não devem ceder às tentações da história contrafactual, mas o resto da galera pode.
Muitos amadores acreditam que foi o telegrama urgente enviado por Juan Pujol García que interceptou literalmente as tropas alemãs que já estavam sendo enviadas para reforçar as posições naqueles oitenta quilômetros de praias em que foi feita “a maior contribuição de todos os tempos dos povos anglófonos à civilização”.
As palavras são do historiador Andrew Roberts.
Morreram naquele dia 4 572 soldados aliados: 2 500 americanos, 1 641 britânicos, 350 canadenses, 37 noruegueses, 19 franceses, 12 australianos e dois neozelandeses.
Depois da guerra, o agente Garbo pediu a seu contato inglês que simulasse a morte dele por malária em Angola: tinha medo de represálias da rede nazista de resistência. Foi morar na Venezuela.
Eisenhower recebeu a rendição incondicional e final dos alemães na madrugada de 7 de maior de 1945 em Reims, na França, onde havia instalado seu quartel-general numa escola. Não participou da cerimônia e não bateu continência para os comandantes vencidos, limitando-se a perguntar se pretendiam cumprir os compromissos assumidos.
George Patton morreu num acidente de automóvel em 21 de dezembro de 1945, dois meses depois de ser afastado do comando do Terceiro Exército, à frente do qual havia usado a tática de blitzkrieg, aprendida com os alemães, para salvar a pátria na Batalha das Ardenas e chegar ao coração da Alemanha.
Definitivamente, era um soldado fabuloso que não tinha o menor talento político.
Os caminhos de Churchill e Eisenhower voltaram a se cruzar, com as mesmas brigas do passado, quando o gigante britânico voltou a ser primeiro-ministro e o general americano, eleito com o melhor slogan de campanha de todos os tempos (I like Ike), estava na Casa Branca.
Ele havia tomado posse em 20 de janeiro de 1953. Stalin morreu de derrame cerebral um mês e meio depois, em 5 de março.
Para agradar o novo presidente, Churchill cortou vários trechos do último volume de sua história da Segunda Guerra onde contava como os americanos haviam traído países aliados do Leste europeu, entregando-os de bandeja aos soviéticos.
A vida já era bem mais complicada do que naquele dia de junho de 1945 onde o bem e o mal estavam limpidamente delineados, direita e esquerda lutavam do mesmo lado e não havia idiotas na rua chamando o presidente americano de nazista.
Ah, sim: e o bem venceu o mal.