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O monstro francês: trazia estranhos para violar a mulher; pegou vinte anos

Abusou da filha, propôs brinquedo para netas se elas posassem nuas; é difícil até dimensionar a perversidade de Dominique Pélicot

Por Vilma Gryzinski 19 dez 2024, 08h05

“Sim, sou um estuprador; e todos aqui também são”. Com essas palavras, Dominique Pélicot resumiu o espírito de seu julgamento, no qual assumiu “todos os fatos”.

E os fatos são estarrecedores. Mesmo para quem trabalha com a ampla gama de perversões humanas, o caso do francês que convidou mais de 70 homens para estuprar a mulher dopada provoca espanto.

E ela não foi a única vítima da família: o eletricista aposentado de 72 anos fotografou a filha despida e, também, aparentemente, drogada; instalou câmeras no banheiro para filmar as duas noras e propôs a netas que tirassem a roupa para ele fazer fotos em troca de um brinquedo. Durante o julgamento, disse que “nunca tocou” em filhas e netas, talvez ainda sem consciência do que consiste abuso.

É possível que também tenha estuprado e matado uma jovem corretora de imóveis que havia ido mostrar um apartamento para ele em Paris e violentado mais quatro mulheres dominadas na ponta da faca. São crimes arquivados agora reabertos. O desfile de horrores em julgamento no departamento de Vaucluse chegou ao fim hoje. Deveria também encerrar um ciclo de sofrimento inimaginável para a mulher do homem que passou a ser chamado de monstro de Avignon, Gisèle, cujo mundo desabou no dia espantoso em que foi chamada pela polícia e confrontada com arquivos de computador onde ele registrava minuciosamente os nomes de dezenas de homens a quem ofereceu o seu corpo inerte.

IMAGENS PERTURBADORAS

A polícia descobriu os terríveis segredos guardados no computador quando apreendeu o equipamento, num caso em que Pélicot havia sido detido por filmar debaixo da saia de três mulheres num supermercado.

Por causa desses arquivos, num total de 200 mil itens, a polícia identificou cinquenta dos 72 homens que aparecem nas imagens extremamente perturbadoras. Eles também serão levados a julgamento por estupro.

Gisèle, de 72 anos, reviveu tudo com que já havia sido confrontada nos primeiros contatos com a polícia. Aguentou bem o pesadelo. Apenas uma vez saiu correndo do tribunal.

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Seu advogado disse que ela abriu mão do sigilo do julgamento, ao qual teria direito, para que “a vergonha mude de lado” – ou seja, para que os culpados pelas brutalidades contra seu corpo inerme sejam os verdadeiros alvos de condenação e repúdio, sendo eles quem devem se envergonhar, não a vítima. Suas palavras viraram um lema de manifestações contra a violência sofrida por mulheres abusadas.

“É SUA VEZ”

Um dos motivos para sua resistência é que recuperou a saúde mental: Gisèle achava que tinha problemas graves de saúde, inclusive constantes infecções ginecológicas, e um começo de Alzheimer por causa dos “brancos” de memória, causados pela alta dosagem de benzodiazepínicos que o marido disfarçava em sua comida e na taça de vinho rosê que tomava no jantar.

Há registro de que, numa única noite, Pélicot deu dez comprimidos desse tipo para a mulher. Conseguia os ansiolíticos em grande quantidade, segundo seu depoimento, através de um enfermeiro com quem entrou em contato pela internet.

Um dos estupradores a violentou durante seis horas. O mais jovem deles, Joan Kawai, militar de 26 anos, disse que viu Pélicot estuprar a esposa inerte e depois convidá-lo com as seguintes palavras: “É sua vez”. Achou tudo normal, exceto pelo fato de que a mulher estava ressonando. Na segunda vez que participou do abuso, chegou a “perguntar se era normal, mas ele não respondeu”.

Os 51 acusados identificados participaram de 200 atos de violação. Um vizinho que morava a apenas 200 metros, Simoné Mekenese, passou na casa do casal para “dar uma olhada” em Gisèle antes do estupro – que nega, apesar dos vídeos registrando a barbaridade. “Não sou estuprador”, disse, repetindo uma frase de muitos outros dos 51 acusados. Um, o bombeiro Christian L’Ecole, chegou a se declarar “libertino” para justificar a participação na violência.

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“MINHA FILHA NUA”

Muitas mulheres que acompanharam o caso se impressionaram com a resistência de Gisèle, uma mulher miúda, de cabelos tingidos de vermelho e olheiras profundas, roupas de quem não desistiu da vida, sempre com uma bolsa a tiracolo, como um pequeno escudo contra os horrores em série que reviveu.

Ela aguentou até um dos fatos mais perturbadores: um dos homens atraídos para estuprá-la enquanto estava inconsciente, tendo repetido a violência seis vezes, era portador de HIV. Obviamente, não usou proteção.

Gisèle também pediu a uma influenciadora que fechasse uma conta de crowdfunding em nome dela, dizendo que não queria fatos chamativos paralelos ao julgamento. A influenciadora atendeu.

A própria filha de Gisèle, Caroline Peyronnet, de 45 anos, não aguentou e saiu soluçando do tribunal quando foi abordado um fato que já conhecia, mas continua a ser extremamente traumatizante: as fotos em que aparece adormecida, em posição fetal, com uma roupa íntima cuja existência ignorava, no arquivo “Minha filha, nua”.

“PROTOCOLO” DO ABUSO

Ela tem certeza que também foi dopada. Quando um policial lhe mostrou as fotos pela primeira vez, demorou a reconhecer a si mesma. Chegou a ser internada, em profunda crise emocional, pelas descobertas hediondas.

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Uma das duas noras de Pélicot, Aurore Lemaire, já contou o episódio em que suas filhas estavam
num supermercado com os avós e pediram um brinquedo. Pélicot disse que ficaria “feliz em fazer isso, contanto que posassem nuas para ele”. Ela e a concunhada foram fotografadas sem roupa por câmeras secretas. Céline Pélicot, também foi fotografada sem saber, nua, quando estava grávida das filhas gêmeas.

Pélicot estabeleceu um “protocolo” para os homens com quem entrava em contato através de um site chamado “Sem seu conhecimento”, voltado para quem tinha o fetiche de se relacionar sexualmente com mulheres adormecidas ou inconscientes.

Os candidatos tinham que estacionar longe da casa em Mazan, uma cidadezinha de seis mil habitantes onde o casal foi morar depois da aposentadoria. Não podiam cheirar a perfume ou cigarro e tinham que sussurrar para não correr o risco de despertar Gisèle. Também tinham que ter unhas cortadas e lavar as mãos.

Uma câmera com tripé registrava tudo.

MOSAICO DA SOCIEDADE

De cada dez homens com quem Pélicot entrou em contato ao longo de sete anos, apenas três recusaram a proposta de estupro da mulher inconsciente, segundo ele. As profissões dos que aceitavam e hoje, na maioria, estão no banco dos réus, formam um verdadeiro mosaico da sociedade. Encanador, caminhoneiro, bombeiro, operador de empilhadeira, empresário, militar, guarda penitenciário, jornalista.

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“Se a esposa era dele, não foi estupro”, defendeu-se um dos réus, mostrando uma concepção inacreditável do que é violência sexual. Vários alegaram que acreditavam participar de um jogo sexual com a anuência da mulher, embora não explicassem por que ela dormia profundamente e o marido exigia vários comportamentos para não despertá-la.

Outro se tornou um “discípulo”: recebia medicamentos através de Pélicot, dopava a própria esposa, mãe de seus cinco filhos, e a violentava, enquanto o “mestre” assistia ou cometia ele próprio o abuso. O processo durou cinco anos.

O próprio Pélicot deu a seguinte “explicação” para uma psicóloga do sistema prisional: “Eu e minha mulher conversamos sobre troca de casais, ela não aceitou, então a droguei”.

“Ninguém nasce pervertido. Você se torna um pervertido quando conhece alguém que lhe oferece oportunidades. Daí,se torna pervertido”, afirmou durante o julgamento.

KIT ESTUPRO

Casos de “estupro químico” em que o criminoso coloca substâncias incapacitantes na bebida das vítimas são, tristemente, notórios. O inglês John Worboys cumpre pena de prisão perpétua por ataques contra dezesseis mulheres.

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Ficou conhecido como o estuprador do táxi preto: oferecia caronas a jovens saindo da balada em Londres, simulava querer comemorar uma data importante e propunha um brinde com espumante “turbinado”.

No porta-malas do táxi, levava um “kit estupro”, incluindo luvas e preservativos para não deixar traços identificáveis. A mulher do ex-primeiro-ministro Boris Johnson, Carrie, foi uma das vítimas. Era muito jovem quando chegou na casa da mãe de manhã, sem se lembrar do que tinha acontecido. Reconheceu Worboys quando ele foi preso. Não sabe até hoje se foi violentada ou não.

O cantor e produtor musical Sean Combs, conhecido como Diddy, está preso e acusado por dezenas de pessoas, homens e mulheres, de drogá-los em festas e submetê-los a estupros individuais e coletivos.

Mas um caso como o do monstro francês, que durante anos dopou a mulher para oferecê-la a muitas dezenas de estranhos é praticamente sem precedentes.

“TERRA ARRASADA”

Pélicot reconheceu os crimes e sua advogada pediu apenas atenuantes. Ele diz que foi violentado quando criança por um enfermeiro no hospital onde estava internado com um ferimento na cabeça.

“Talvez devêssemos ajudá-lo também”, disse Gisèle, com grandeza quase inacreditável. Sobre ela mesma, declara que “a fachada parece sólida, mas por dentro é terra arrasada”. Segue em frente para que outras mulheres não sofram a mesma “submissão química” e por causa dos três filhos, todos estupefatos depois de descobrirem que não faziam a menor ideia de quem era seu pai.

“Eu a amei bem durante 40 anos e mal durante dez. Perdi tudo”. Assim Pélicot definiu seus sentimentos.

“Nem por um segundo duvidei desse homem. Teria dado minhas duas mãos por ele”, depôs Gisèle, aplaudida várias vezes ao chegar ao tribunal. Ela se transformou num símbolo do horror dos abusos mais vis que podem ser infligidos a mulheres, mesmo sem ter feito conscientemente nada para isso – exceto pegar a bolsa e enfrentar um mundo de horrores de cabeça erguida.

Hoje, encerrou esse capítulo. Aos 72 anos, começa uma nova vida – ou pelo menos tem esperança de que isso aconteça. Recentemente, tirou o sobrenome do ex-marido, que mantinha por causa dos filhos.

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