Nojentos, liberticidas e muito espertos
Golpes sem tanques: como regimes eleitos se tornam paraditaduras
Da enorme gama de piadas que garantiram uma sombra de sanidade mental aos soviéticos durante os tempos mais sombrios, uma se destaca por dizer tudo de forma tão sucinta que resume sete décadas de totalitarismo. “Pergunta: ‘Camarada, ainda existirá polícia quando o comunismo estiver construído?’. Resposta: ‘Claro que não. Até lá, todos os cidadãos terão aprendido como prender a si mesmos’.” A piada é uma aula magna de autoritarismo, o sistema que atinge o ápice quando se instala no mais profundo âmago dos dominados. É um dos recursos mais evidentes dos regimes que o ex-ministro e colunista boliviano Carlos Sánchez Berzaín chama de paraditatoriais. São governos eleitos pelo voto e convictos de que a maioria chancela atos que solapam os fundamentos da democracia, deslegitimam as minorias eleitorais e transformam a liberdade de expressão em, numa definição tristemente perfeita, “falácia”. Muitos desses governos têm líderes com alta popularidade. Nayib Bukele é um fenômeno, com a aprovação batendo em 90% depois que colocou mais de 60 000 pessoas na cadeia e elevou El Salvador de valhacouto da criminalidade a um país comparativamente seguro. Bukele começou na esquerda e hoje ocupa um espaço em algo similar à direita, mas espertamente confunde os sinais. Já garantiu o direito à reeleição, que era proibida pela Constituição. A maioria no Legislativo permitiu que aposentasse um terço dos juízes. Minar a independência do Judiciário (onde ele a honra), apertar a imprensa (onde ela não se dobra ao poder) e até se fantasiar de sultão da nova era, chegando ao ridículo de, antes do primeiro turno, orar em Hagia Sophia, a igreja bizantina transformada em mesquita, foram alguns dos instrumentos que devem levar Recep Tayyip Erdogan à eleição para um terceiro mandato como presidente da Turquia.
“Até em democracias exemplares, como Israel, as tentações rondam”
Até agora estamos falando dos regimes paraditatoriais que oferecem alguma coisa à população, o que ajuda a entender sua popularidade. O que um Nicolás Maduro tem a mostrar? Só se for comparado ao desastre que ele mesmo agudizou, provocando uma histórica hecatombe num país riquíssimo em petróleo. A dolarização “branca” deu uma estabilizada no que foi a maior inflação do planeta. Nada tão ruim que o vizinho Gustavo Petro não queira copiar. Tendo desmanchado o governo multipartidário com que estreou, o presidente de extrema esquerda apareceu na sacada do Palácio de Nariño, ao melhor estilo paraditadura, convocando os colombianos a fazer uma revolução porque o Congresso estava atrapalhando seus planos. A pueblada não funcionou por falta de povo, mas Petro continua tentando.
Até em democracias exemplares, como Israel, as tentações rondam. Benjamin Netanyahu achou que a maioria parlamentar, alcançada em coalizão com a extrema direita, lhe dava o direito de mudar o Judiciário. Errou feio. A participação do outrora impoluto FBI na armação para incriminar Trump numa inexistente conspiração com a Rússia mostrou que nada é garantido, mesmo num país em que a democracia foi criada por gênios e consolidada numa Constituição à prova de idiotas. Imaginem em outras plagas.
Para encerrar, uma metapiada soviética: “Um juiz sai do tribunal rindo muito e um colega pergunta o motivo. ‘Uma piada ótima que ouvi.’ O colega pede para ele contar. ‘Está louco? Acabei de dar dez anos de prisão a um homem por causa dela’ ”.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843