Noite dos punhais: a traição a Biden
Não foi difícil para aliados repudiarem presidente que perdeu rumo
Os antecedentes são nobres e não devem ter faltado lembranças do monumental Júlio César, a peça de Shakespeare que continua a ser o mais requintado tratado sobre a traição já feito. Diz Brutus, justificando a conspiração dos senadores que apunhalaram o líder: “Não foi porque amei menos a César, mas porque amei mais a Roma. Preferiríeis que César estivesse vivo, para que morrêsseis todos escravos, a que César estivesse morto, para viverdes livres?”.
Substitua-se a parte “morrêsseis todos escravos” por “elegêssemos Donald Trump” e ficou pronta a desculpa perfeita: quando o sistema se sente ameaçado, é lícito eliminar a ameaça. Como os senadores romanos, os jornalões se sucederam nas punhaladas, quer dizer, nos editoriais, pedindo a toga ensanguentada, metaforicamente, de Biden por incapacidade terminal. Os mais próximos porta-vozes de Barack Obama foram os primeiros a sacar das armas brancas, também chamadas tuítes ou telefonemas para jornalistas amigos. E sem off, um sinal da paúra que baixou no Partido Democrata diante da mais aterradora de todas as possibilidades, a de perder o poder. No final, só sobrou a discussão sobre uma saída “digna”.
Como a história é praticamente uma grande coleção de ironias que se sucedem, vez ou outra recriadas por um gênio da escala de Shakespeare, da última vez em que foi possível assistir a uma movimentação pública em massa do sistema, as punhaladas retóricas recaíram sobre Trump na campanha de 2020. E funcionaram: Joe Biden foi eleito quinze dias depois da carta aberta dos 51 ex-integrantes de órgãos de inteligência — um poder formidável em qualquer lugar, ainda mais nos Estados Unidos — dizendo que era desinformação russa o computador em que Hunter Biden aparecia mostrando o pior que pode fazer um homem dominado pelo crack. A reportagem retratando isso foi exilada das grandes redes sociais e fulminada pela imprensa alinhada com os democratas. Era tudo verdade.
“Como os senadores romanos, os jornalões se sucederam nas punhaladas, quer dizer, nos editoriais”
A traição a Trump foi feita com gosto e convicção. A Biden, com compunção. “Teríamos compreendido se ele se abstivesse”, disse Robespierre sobre o voto do duque de Orleans, que havia mudado de nome para Felipe Igualdade depois da Revolução Francesa. O voto, no caso, foi pela execução na guilhotina de seu primo, o rei Luís XVI. Um duque da realeza não tinha vida longa na voraz França revolucionária, mesmo tendo mudado de lado. Dez meses depois, em novembro de 1793, ele foi condenado à guilhotina (Robespierre durou até o ano seguinte).
Depois de mandar matar o mais carismático líder comunista, Sergei Kirov, Stalin assinou a nota em que a cúpula soviética lamentava “o amigo de confiança, o amado camarada, o fiel companheiro de armas”. E imediatamente usou o assassinato para desfechar os grandes expurgos contra os mais fiéis comunistas. A União Soviética era menos cruel com seus líderes no pós-stalinismo, e assim se sucederam as mortes naturais de Leonid Brejnev (1982), Yuri Andropov (1984) e Konstantin Chernenko (1985). O establishment americano absorveu muito bem como a série de líderes velhos e doentes enfraqueceu o rival ideológico.
“Porque César me amava, choro por ele; porque foi feliz, regozijo-me; porque foi bravo, honro-o; mas porque era ambicioso, matei-o.” Sim, até ele, Brutus.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900