“Ouça minhas palavras: pode levar mais cinquenta anos para que outra liderança israelense faça uma proposta parecida.” Assim o primeiro-ministro de Israel na época, Ehud Olmert, tentou vender o plano de criação de dois estados que discutiu entre 2006 e 2008 com o palestino Mahmoud Abbas. Por sua proposta, um Estado palestino teria jurisdição sobre 94% dos territórios da Cisjordânia e sobre a parte árabe de Jerusalém. Cisjordânia e Gaza seriam conectadas por um corredor terrestre. A fronteira do novo Estado palestino com a Jordânia seria patrulhada por uma força internacional e a entidade autônoma e independente teria forças policiais, mas não um exército.
A proposta foi rejeitada — e talvez agora leve 100 anos para que existam as condições de um novo entendimento. Por que Abbas repetiu Yasser Arafat, que no ano 2000 levou o presidente Bill Clinton a anotar que “não acreditava” que um plano de paz tão bom como o apresentado por outro primeiro-ministro israelense, Ehud Barak, fosse rejeitado? Por medo de enfrentarem revoltas internas. Depois de prometerem tudo, não poderiam ficar com menos do que o absoluto — e perder alguma coisa, para os dois lados, é o único jeito de ambos ganharem o grande prêmio no final.
“A Primavera Árabe já mostrou que o ‘sentimento das ruas’ pode ter resultados explosivos”
O principal representante americano naquelas negociações era Dennis Ross, diplomata com ampla experiência no Oriente Médio. Foi ele quem escreveu que todos os funcionários de alto escalão árabes com quem falou desde a eclosão da crise atual disseram que o Hamas precisa ser destruído. “Deixaram claro que, se houver a percepção de que o Hamas saiu ganhando, isso vai validar a ideologia da rejeição, impulsionar o Irã e seus colaboradores e colocar seus próprios governos na defensiva”, resumiu Ross. Por defensiva, leia-se cabeça a prêmio.
Ninguém com um mínimo de conhecimento do Oriente Médio fica espantado com as diferenças de atitude entre o que é dito em público e o que é confidenciado em particular. Regimes árabes que não parecerem implacáveis com Israel correm o risco de condenação pela opinião pública. A Primavera Árabe já mostrou que o “sentimento das ruas” pode ter resultados explosivos. Regimes aparentemente estáveis, como a Jordânia, o Egito ou até a Arábia Saudita, correm risco de implosão. Na Jordânia, já eclodem manifestações contra “Wadi Araba”, o nome pelo qual é conhecido o tratado de paz de 1994 do país com Israel. É forte na região a influência da Irmandade Muçulmana, a matriz fundamentalista de onde nasceu o Hamas. Metade da população jordaniana é palestina, inclusive Rania, a mulher do rei Abdullah, que deu uma entrevista reclamando do excesso de atenção no Hamas, como se os pobrezinhos estivessem sendo perseguidos por chacinar 1 400 israelenses. Ela e o marido não durariam cinco minutos num regime em que o fundamentalismo à la Irmandade Muçulmana ganhasse o poder. Como, aliás, todas as monarquias árabes, consideradas ilegítimas e traidoras. Na lista também está o palestino Mahmoud Abbas. Na análise de Ehud Olmert, Abbas sairia muito fortalecido caso se concretizasse a aliança entre EUA, Israel e Arábia Saudita. Agora, está brutalmente enfraquecido. “Terminar a guerra agora significa que o Hamas ganharia”, resumiu Dennis Ross. E esta perspectiva apavora muitos dos líderes árabes. Inclusive os dedicados a campanhas pelo cessar-fogo.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866