Mulheres afegãs: sem universidades, salões de beleza e pontos turísticos
Perseguição é resumida por porta-voz que, ao defender a burka, disse que “o valor da mulher diminui se os homens olham para ela”
Duas jovens afegãs já estavam dentro do avião, numa viagem com bolsa de estudos para cursar a universidade em Dubai, quando foram retiradas pelas autoridades.
A perversidade desse ato, ocorrido no mês passado, praticamente resume a perseguição do regime fanático do Talibã às mulheres do Afeganistão. Não basta ter proibido que mulheres façam curso superior, é preciso impedir até mesmo as que vão estudar no exterior, com bolsas bancadas pelo milionário filantropo Khalaf Ahmad Al Habtoor, que não quer ver a religião muçulmana conspurcada por radicais capazes de abusos desse tipo.
Desde que voltou ao poder, com a vexaminosa retirada americana, em 2021, o Talibã tem tentado apresentar um comportamento relativamente moderado, mas os fundamentos não mudaram. Pela doutrina oficial, as mulheres devem se cobrir inteiramente para sair em público, embora o uso obrigatório da burka esteja sendo retomado em etapas.
Um porta-voz do Ministério para a Prevenção do Vício e a Promoção da Virtude, Molvi Mohammad Sadiq Akif, resumiu o espírito da coisa: “É muito ruim que mulheres circulem sem cobrir a cabeça em algumas áreas e nossos estudiosos concordam que os rostos também deveriam ser cobertos”.
“A mulher tem um valor intrínseco e esse valor diminui quando homens olham para ela”.
O mesmo Ministério anunciou que as mulheres estão proibidas de visitar o Parque Nacional de Band-e-Emir, uma região de lagos naturais famosos pela beleza. Motivo: foram vistas mulheres cometendo o grave crime de circular na área sem cobrir a cabeça. “Visitar pontos turísticos não é uma necessidade para mulheres”, argumentou o órgão encarregado de patrulhar a população do ponto de vista da mais extrema e radical interpretação das leis islâmicas.
Também estão proibidos salões de beleza e academias de ginástica, mesmo que só frequentados por mulheres. Desaparece assim uma fonte de renda importante, num país em que praticamente todos os empregos femininos também foram proibidos.
A mesma obsessão por cobrir a cabeça das mulheres é vista no Irã, um país de maioria xiita que estaria na vanguarda do avanço em comparação ao praticamente miserável Afeganistão e seus fanáticos sunitas.
No domingo, foi fechado um parque aquático por causa de frequentadoras que “ignoraram as regras de modéstia”, circulando de cabelos à mostra.
Está fazendo um ano que a jovem curda Massa Amini, vítima de traumatismo craniano quando estava sob custódia policial pelo grave delito de deixar algumas mechas de cabelo aparecer sob o lenço obrigatório na cabeça. As grandes manifestações de protesto acabaram reprimidas, inclusive com a aplicação de morte na forca por casos de agentes da lei agredidos.
Em lugar de um retrocesso, o regime iraniano agora se sente fortalecido o suficiente para tornar mais rígidos os regulamentos sobre o modo de trajar das mulheres.
“Envolva o lenço da cabeça sobre o peito”, diz o Corão, num trecho suficientemente ambíguo para comportar diversas interpretações.
Cobrir a cabeça, principalmente no caso das mulheres casadas, é um hábito que já foi quase universal, em países de diferentes religiões, inclusive no Brasil colonial.
Curiosamente, nos anos setenta, afegãs e iranianas podiam circular pelo menos pelas grandes cidades vestindo roupas ocidentais, inclusive minissaias. A volta dos trajes longos e dos cabelos transformados em fontes de raios perigosos para os homens — é sério, foi dito isso por um líder iraniano “secular” — coincidiu com a politização da religião muçulmana.
E com uma estranha inversão de valores: na França, os protestos contra a proibição do uso de abaya, um manto comprido sobre as roupas, nas escolas são feitos pela extrema esquerda.
Autoridades iranianas anunciaram o uso de ferramentas de inteligência artificial para identificar mulheres que tirem o lenço da cabeça. Ou seja, serão perdidos até os rápidos momentos de liberdade, em cafés ou outros espaços que não patrulhavam os trajes femininos.
No Afeganistão, cerca de cem jovens foram impedidas de embarcar para cursar estudos superiores em Dubai. “Era uma tremenda oportunidade para nós, mas, como tudo mais, nos foi tirada”, disse uma jovem identificada apenas como Leila.